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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Doenças alérgicas profissionais



 Antonio Sousa-Uva

As doenças alérgicas, com importância crescente nos últimos 30 a 40 anos, afastam-se muito do modelo tradicional das doenças profissionais, uma vez que a dose de exposição poderá ter influência na sensibilização mas o trabalhador, uma vez sensibilizado, é susceptível de ter manifestações clínicas da doença independentemente da intensidade (ou da dose) de exposição.

 

Talvez o maior problema das doenças alérgicas profissionais resida na decisão sobre a aptidão para o trabalho já que diversos estudos revelam que uma vez feito o diagnóstico, a manutenção da exposição profissional pode, em muitos casos, agravar a patologia e manter-se mesmo após o afastamento do agente profissional.

 

As manifestações alérgicas ligadas ao trabalho podem ter diversas localizações assinalando-se, pela sua importância, a árvore respiratória (asma e alveolites alérgicas extrínsecas) e a pele (eczema de contato, urticária ou edema de Quincke). A alergia profissional pode ainda caracterizar-se por manifestações oculares (conjuntivites e uveítes, por exemplo) e menos frequentemente, por reações sistémicas graves como a anafilaxia.

 

As principais formas clínicas são a asma alérgica, a rinite alérgica e o eczema de contato alérgico.

 

O atual conhecimento científico das relações dose-efeito(resposta) destas patologias é muito incompleto parecendo que quanto maior for a intensidade e o tempo de exposição, maior é a probabilidade de ocorrência do quadro clínico. Tal tem justificado a fixação de concentrações máximas admissíveis (ou valores limite) de exposição.

 

Os agentes etiológicos são extremamente numerosos e englobam substâncias orgânicas, macromoléculas simples e outras substâncias não macromoleculares.

 

Talvez a principal alergopatia profissional seja a asma que, no contexto das doenças respiratórias profissionais, tem vindo a adquirir o principal protagonismo, desalojando as doenças respiratórias dose-dependentes, como é o exemplo típico da silicose. Trata-se de uma doença caracterizada por obstrução brônquica variável e por uma hiper-reactividade brônquica, também variável, ambas causadas por agentes profissionais. O denominador comum é ser uma doença inflamatória crónica das vias aéreas.

 

Os mecanismos de broncoconstrição são incompletamente conhecidos envolvendo a broncoconstrição reflexa (ação direta nos recetores brônquicos), a reação inflamatória (gases e partículas com ação irritativa), farmacológica (semelhante a fármacos, como os organofosforados, os persulfatos e as aminas aromáticas) e imunológica (haptenos ou alergénios, reação IgE mediada ou não). Nalguns casos, como por exemplo na bissinose, parecem coexistir diversos mecanismos de broncoconstrição.

 

Outra alergopatia muito frequente é a rinite alérgica profissional, muitas vezes a primeira manifestação de uma alergia respiratória relacionada com o trabalho. Ainda que possa aparecer isolada a rinite é muitas vezes um sinal de “alarme” de uma asma profissional. São disso um bom exemplo as atividades em padarias e o trabalho com animais (incluindo os de laboratório). As suas manifestações clínicas são as crises esternutatórias, muitas vezes em salva, o prurido nasal, a rinorreia e a obstrução nasal.

 

Finalmente, os eczemas de contacto alérgicos caracterizam-se por uma reação de hipersensibilidade retardada em que o alergénio (ou o hapteno) reage com as células de Langerhans que o apresentam aos linfocitos T que culminará em memória imunológica e células efectoras (a chamada fase de sensibilização). Qualquer novo contacto desencadeia a libertação de citocinas, interferão e a ativação dos macrófagos (a chamada fase de revelação).

 

Talvez o eczema alérgico de contacto mais característico seja o eczema dos pedreiros, resultante da sensibilização a dois metais, o crómio e o cobalto.

 

O modelo de prevenção dos riscos profissionais, centrado no ambiente de trabalho, é essencialmente concebido para fatores de risco de natureza profissional dose-dependentes. Algumas variáveis de natureza individual, como por exemplo a atopia pode ser um fator muito importante na exposição profissional a faneras de animais mas  não terá tanta importância noutros casos, por exemplo, na exposição a substâncias químicas de baixo peso molecular.

 

As principais medidas de prevenção deverão centrar-se na prevenção coletiva, atribuindo grande prioridade à substituição do agente causal. A utilização cada vez mais criteriosa de luvas de látex e a sua substituição por luvas sem látex é disso um bom exemplo. Também a máxima hermetização de fases do processo fabril com exposição a agentes causais tem indiscutível importância. 


Quaisquer que sejam as estratégias de gestão de riscos, não se devem circunscrever aos fatores de risco individuais as principais medidas de gestão desses riscos profissionais.

 

 

 

Lisboa, 22 de dezembro de 2021




Nota: Baseado nos dois textos referidos na bibliografia


Bibliografia

 

  • Sousa-Uva A. O médico do trabalho e as doenças alérgicas profissionais. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (Cadernos Avulso 02), 2000. Em linha. Disponível em: http://www.spmtrabalho.com/downloads/ca02.pdf, consultado em 12-12-2021.

  • Sousa-Uva A. Doenças alérgicas profissionais In: Mendes R. Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador: Conceitos – Definições – História – Cultura. Novo Hamburgo: Proteção Publicações, 2018. 1.280 p. isbn:978-85-67121-01-7. 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho: 56 anos de dedicação à Medicina do Trabalho e à Saúde Ocupacional

  


Antonio Sousa-Uva (sócio honorário da SPMT)

 

 

A Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (SPMT) completou hoje, dia 30 de novembro de 2021, 56 anos de existência participando empenhadamente na criação e na divulgação de conhecimento para a protecção e a promoção da saúde de quem trabalha.

 

De pouco mais de uma dezena de médicos fundadores nos anos de 1960 para umas centenas de sócios actuais tem sido um verdadeiro “farol” no estudo e na investigação das relações entre o trabalho e a saúde (ou a doença) e espera-se que assim se mantenha por muitos anos.

 

Em mais um seu aniversário deve-se recordar que as sociedades científicas não são sociedades de defesa das condições de exercício de uma qualquer actividade mas, acima de tudo, espaços isentos e imparciais em que tudo se faz, no caso da SPMT, para perseguir um mais robusto conhecimento das interdependências entre o trabalho e a saúde(doença) com o objectivo de proteger e promover a saúde de quem trabalha e contribuir para a manutenção da sua capacidade de trabalho.

 

Tendo integrado, em praticamente metade da sua existência, diversos órgãos dirigentes e na qualidade actual, que já vem de há alguns anos, de sócio honorário da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho regozijo-me com a efeméride e faço votos que esse seu papel central na Medicina do Trabalho e na Saúde Ocupacional Portuguesas seja cada vez mais reforçado e distinguido. Dessa forma, numa realidade caracterizada por demasiadas más práticas, será reforçado o seu comprometimento com práticas adequadas que se centrem na protecção da saúde do trabalhador que constitui, na perspectiva da criação e divulgação de conhecimento científico, a verdadeira razão da sua existência.

 

Oxalá a SPMT tenha vida longa e órgãos competentes para cumprir, também competentemente, as suas razões fundacionais e, dessa forma, possa contribuir para condições de trabalho cada vez melhores na perspectiva da saúde e da segurança do trabalho. Deve mesmo recordar-se que foi apenas para isso que foi criada!

30 de novembro de 2021

 

Bibliografia

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A prevenção das doenças profissionais usada como “papel de embrulho”?

 


Antonio Sousa-Uva

 

A mortalidade por doenças profissionais (e outras doenças “ligadas” ao trabalho) é muito superior à mortalidade por acidentes de trabalho, apesar de ser frequente a referência quase que apenas a estes últimos. Seria, para tal, apenas necessário referir que a mortalidade por cancro profissional, ou por outros cancros “ligados” ao trabalho, supera largamente a dos acidentes de trabalho com desfecho mortal e, apesar disso, pouco se fala disso.


Claro que as relações trabalho/lesão (que ocorrem num acidente de trabalho) são mais fáceis de compreender relativamente a relações trabalho/doença, de maior complexidade, que se expressam, a maior parte das vezes, alguns (às vezes muitos ou mesmo imensos) anos após a exposição e, quase sempre, com uma expressão clínica que se confunde com as doenças naturais. Por vezes até a sua manifestação pode  só ocorrer após a cessação da actividade profissional que esteve na sua origem, o que determinou, na nossa actividade de médico do trabalho, a realização de exames periódicos a trabalhadores já reformados com anterior exposição a metais pesados.


Sabe-se que, por  exemplo, em 2016 terão, por estimativa, ocorrido quase dois milhões de mortes (1.880.000) e quase 90 milhões de DALYs (disability-adjusted life years) que são atribuídos à exposição a um determinado conjunto de factores de risco profissionais1. Dessas mortes, cerca de 81% relacionam-se com doenças (e 70% com os DALYs) e, pasme-se, as lesões por acidente, os complementares 19%.


Qual será então a razão (ou as razões) para tão escandaloso "apagão"? Poderão estar na sua origem pecaminosas expressões de afirmação de poder de quem deveria focar mais a sua acção nos resultados da sua intervenção do que na defesa dos seus interesses?


As doenças dos trabalhadores, concretamente as profissionais e as outras “ligadas” ao trabalho, são conhecidas há milénios, ainda que se atribua há menos tempo (cerca de três séculos) a Bernardino Ramazzini a primeira publicação de uma obra sobre essa matéria (referem-se, entre muitas outras, duas traduções em língua portuguesa e espanhola)2-3. À data, o autor vaticinou, nesse seu livro, a possível  utilidade prevista para a sua obra como papel para embrulhar salsichas, sal ou especiarias! Visão profética, por certo, do valor ainda atribuído à matéria da Saúde do Trabalhador pelas empresas e outras organizações, senão mesmo pelas sociedades (mesmo do 1º mundo!).


Dito de outra forma poderá continuar a matéria a ser "papel de embrulho" em detrimento de valores díspares relacionados com verdadeiros "jogos de poder" de, muitas vezes, "para-quedistas" numa espécie de "baldio" que se fosse galinheiro também albergaria, dessa forma, a raposa?


Naquela obra de Ramazzini descreviam-se, há mais de três séculos, mais de cinco dezenas de grupos de doenças profissionais, organizadas, no essencial, por profissões e actividades profissionais. Essa descrição, na sua dimensão clínica, mantém-se mesmo, no essencial, actual para muitas dessas doenças. Também  a sua prevenção continua a ser insuficiente!


As mais complexas relações causa-efeito das doenças profissionais em relação aos acidentes de trabalho não podem, perpetuamente, justificar a insuficiente atenção que, entre nós, lhes é dedicada já que, como se referiu, em cada cinco mortes causadas por factores de risco de natureza profissional, quatro têm na sua origem doenças causadas, total ou parcialmente, pelo trabalho. Perante essa realidade não seria indispensável actuar mais no trabalho do que nos "actores" com essa responsabilidade? Ou, adicionalmente, mais no trabalho que nos trabalhadores? Ou, ainda, mais a preveni-las do que evocar a sua prevenção?


A sugestão que se faz com este pequeno texto (ou "migalha") é de contribuir para a reflexão sobre as razões que estarão na origem dessa tão chocante pouca valorização. É que, com tanto "papel de embrulho", há condições de trabalho e actividades que levam a que muita gente possa acabar por perder a vida a ganhá-la4


Será isso aceitável quando, pelo menos no plano teórico, os riscos profissionais são totalmente preveníveis? Será isso admissível, até numa perspectiva económica, considerando ainda os seus custos em sofrimento e até em morte? E numa perspectiva mais intimista, não seremos todos um pouco coniventes com o actual status quo?


Pelo menos no meu caso, há quase meio século que a isso me dedico e não pretendo ser conivente com a actual situação. E este texto, acredito, pode contribuir de forma humilde para o processo urgente de, definitivamente, focar mais a nossa atenção nos trabalhadores do que nos prestadores ou, até mesmo, nos "reguladores". "Papel de embrulho" da protecção da saúde (e da segurança) de quem trabalha é que não!

 

Bibliografia

  1. WHO/ILO joint estimates of the work-related burden of disease and injury, 2000-2016: global monitoring report. Geneva: World Health Organization and the International Labour Organization, 2021.
  2. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrêla. S. Paulo: Fundacentro, 4ª ed., 2016, 322 pp. ISBN 978-85-98117-82-9
  3. Sociedade de Medicina del Trabajo de la Provincia de Buenos Aires. Bernardino Ramazzini: Dissertacion acerca de las enfermedades de los trabajadores. La Plata, 1987
  4. Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

4 de outubro, dia de comemoração da Medicina do Trabalho



Antonio Sousa-Uva


Na próxima 2ª feira celebra-se mais um dia dedicado às relações entre o trabalho e a saúde/doença. Em alguns países, como é o exemplo do Brasil, esse dia, atribuído ao nascimento do médico italiano Bernardino Ramazzini celebra, efectivamente, o dia do médico do trabalho. Independentemente da maior ou menor correcção do dia de nascimento desse médico italiano (1) atribui-se a ele, no século XVII e início do século XVIII, a chamada de atenção para a relação entre determinadas doenças e determinadas profissões.

A publicação do livro sobre mais de cinquenta doenças dos trabalhadores (De Morbis Artificum Diatriba), em 1700, veio a determinar a necessidade de incluir na anamnese de qualquer exame clínico questões relacionadas com o trabalho. Algumas dessas doenças, como as lesões musculoesqueléticas ligadas ao trabalho (LMELT), principalmente as relacionadas com os gestos repetitivos foram descritas, por exemplo, em copistas, muitos deles monges, que copiavam manuscritos, antes da invenção da imprensa ou da tipografia.

Muitas outras doenças foram nesse livro descritas relacionadas, por exemplo, com diversas profissões como os mineiros, os douradores, os vidreiros, os padeiros ou os carpinteiros.

A chamada de atenção mais frequente daquelas relações entre o trabalho e a saúde/doença esgota-se nos nossos dias, quase sempre, nos acidentes de trabalho, principalmente os mortais que são por vezes notícia em telejornais, ainda que raramente tipificados como tal. Ficam sempre encobertas as doenças profissionais e outras doenças ligadas ao trabalho sempre muito pouco valorizadas.

Apesar disso, se for perspectivada a referida mortalidade, bastará recordar que só o cancro profissional ou o cancro em que os factores de risco profissionais integram a respectiva matriz etiológica são responsáveis por bastante mais óbitos do que os acidentes de trabalho mortais e julgo, pessoalmente, nunca ter ouvido qualquer notícia a esse propósito.

Porque será que não se atribui qualquer importância às doenças profissionais?

Bastará a evocação das doenças profissionais para a sua prevenção?

A baixa atenção que lhes é prestada não se relacionará, no essencial, com as grandes dificuldades no seu reconhecimento já que se confundem com as doenças naturais?

Não faltará criar e divulgar conhecimento sobre as doenças profissionais?

Teremos no nosso Sistema de Saúde dado suficiente atenção e desenvolvido modelos organizacionais para as evitar?

De facto, só se previne o que se conhece e poderá ser essa uma das explicações para a insuficiência reiterada de informação e formação sobre as doenças profissionais (e outras doenças ligadas ao trabalho) e a sua prevenção.

4 de outubro, independentemente do que está na sua origem ou da sua maior ou menor correcção, poderá ser mais uma oportunidade para, pelo menos, adquirir consciência que não faz qualquer sentido que se perca a vida a ganhá-la (2). Como se referiu o número de mortes por doença profissional (ou por outras doenças ligadas ao trabalho) é muito superior à dos acidentes de trabalho mortais e teimar em não o reconhecer é o primeiro passo para adiar a sua prevenção e, dessa forma, perpetuar a sua existência e apoucar os respectivos dispositivos de prevenção. 

Será isso que queremos?

 

(1) Sociedade de Medicina del Trabajo de la Provincia de Buenos Aires. Bernardino Ramazzini: Dissertacion acerca de las enfermedades de los trabajadores. La Plata, 1987.

(2) Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Qual o significado de APTIDÃO PARA O TRABALHO?

 


António Sousa-Uva


A aptidão para o trabalho é um conceito muito mal compreendido e, frequentemente, interpretado como algo que apenas tem em conta aspectos de natureza individual. Tem sempre uma componente temporal e, no essencial, define a capacidade de um trabalhador desempenhar um “determinado trabalho” e, nunca todo e qualquer trabalho. Dito de outra forma, pode-se estar apto para um determinado trabalho e inapto para outro, em função da avaliação da (in)compatibilidade entre a situação de saúde do trabalhador e as exigências concretas do trabalho. Em determinadas empresas a interpretação pode até ser de se estar (apto ou não) para trabalhar nessa empresa, independentemente do posto de trabalho concreto.


O conceito de aptidão (ability, na língua inglesa) para o trabalho (fitness for work, ainda na língua inglesa) está pois intrinsecamente associado à sua componente complementar (incapacidade, “disability” na língua inglesa) de desempenhar as funções profissionais, o que, por sua vez, se associa ainda ao conceito de deficiência (“impairment”). Todavia, a avaliação é essencialmente sobre a adaptação da situação de saúde à situação de trabalho (como se referiu na língua inglesa fitness for Work).

 

Os conceitos de incapacidade, deficiência e inaptidão não são pois indistintos já que significam situações díspares. Dito de outra forma, o conceito de inaptidão para o trabalho está intimamente associado à interdependência entre a deficiência (ou a incapacidade) e as exigências do trabalho, não sendo portanto possível deliberar nessa matéria sem conhecimento dessas duas realidades concretas. Mais uma vez, e dito de outra forma, essa peritagem é feita para um trabalhador concreto numa, igualmente concreta, situação de trabalho.

 

Um trabalhador portador de uma deficiência (ou de uma incapacidade) pode portanto ser totalmente apto para o exercício de uma actividade profissional em que as exigências do trabalho não “interfiram” com a situação de saúde do trabalhador. A designação genérica de deficiência, isto é, a perda (ou anomalia) de uma estrutura anatómica, função fisiológica ou psicológica pode, portanto, não interferir com a actividade profissional de um indivíduo. Um exemplo dessa situação poderá ser a de um professor que, por exemplo, apresente uma paresia dos membros inferiores, o que, não interfere, decisivamente, com as exigências do seu trabalho (excepcionando as acessibilidades). Se o mesmo trabalhador fosse eletricista de alta tensão, tal “deficiência” resultaria, por certo, numa incapacidade, isto é, numa limitação ou desvantagem (o que os ingleses denominam “handicap”).

 

A aptidão para o trabalho está pois associada, para além da avaliação da situação de saúde à capacidade de trabalho do trabalhador, à atividade profissional e às condições de trabalho concretas desse trabalhador e numa determinada empresa (ou organização). A aptidão não é portanto "universal" e, outro aspecto muito importante, é referenciada a uma determinada unidade de tempo.

 

O médico do trabalho não deve portanto decidir sobre a aptidão para o trabalho apenas com base numa determinada situação de natureza médica mas, sobretudo, basear a sua decisão na interpretação da interacção dessa situação com as exigências concretas de trabalho, que a situação de trabalho determina e na situação de saúde concreta determinada pela (eventual) doença que o trabalhador seja portador.  

 

A aptidão para o trabalho não é portanto uma decisão para “todo e qualquer trabalho” mas sempre uma decisão, num determinado momento, sobre a compatibilidade entre a situação de saúde do trabalhador, nesse mesmo momento, e as exigências do trabalho que efectivamente executa (“trabalho real”) e não do denominado trabalho prescrito. O que interessa, portanto, é o que o trabalhador faz concretamente e não aquilo que é suposto que faça (na língua inglesa, "job description").

 

Figurativamente é frequente recorrer-se à imagem de uma chave e de uma fechadura “compatíveis” ou de uma balança em que os seus dois “braços” estão equilibrados para ilustrar o acto de decidir sobre a aptidão para o trabalho, a cargo exclusivamente da Medicina do Trabalho, ainda que com a colaboração indispensável de outras áreas científicas. 


Tal enquadramento, repita-se, é totalmente diferente da perspetiva muito frequente de que o médico do trabalho avalia a situação de saúde sem ter em conta as exigências do trabalho, atestando a robustez física e mental através, entre outros, de uma avaliação clínica e de meios complementares analíticos, de imagem e/ou de função que nada têm a ver com as situações concretas de trabalho. Tem sido por mim usado, em sentido caricatural, a imagem de “carimbar” o ovo para consumo para me referir a uma avaliação global do estado de saúde, com maior ou menor recurso a complementaridades de diversa natureza para "atestar" que "o ovo está em condições para ser consumido".

 

Não! A aptidão tem que ser feita à medida (na língua inglesa, "taylor made") e, portanto, a situação de saúde que uma doença determina (e não a doença propriamente) pode corresponder à aptidão para um determinado trabalho ou à inaptidão para outro trabalho concreto. Sem compreender isso dificilmente se compreenderá para que serve a vigilância médica (ou vigilância de saúde) em Medicina do Trabalho: prevenir potenciais riscos (profissionais) para a saúde e promover a saúde de quem trabalha potenciando a manutenção da sua capacidade de trabalho. E essa peritagem, recorde-se, é da sua exclusiva competência desde os primórdios dessa especialidade médica. 


De facto, longe vão os tempos em que a aptidão para o trabalho se circunscrevia a atestar que o trabalhador pertencia a um determinado grupo etário em que a legislação lhe permitia exercer a sua actividade profissional como sucedeu no século XIX.

 




Bibliografia

  • Sousa-Uva A.  Medicina do Trabalho: o que é e para que serve? In: António Sousa-Uva: Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? Lisboa: Petrica, 1ª edição, 2019. pp. 19-25
  • Sacadura-Leite E, Sousa-Uva A. Aptidão para o Trabalho: conclusão de um exame médico de Medicina do Trabalho ou ponto de partida para a manutenção da capacidade de trabalho? In António Sousa-Uva: Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? Lisboa: Petrica, 1ª edição, 2019. pp. 37-43


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed numa versão agora actualizada.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Promoção da Saúde e Segurança baseada na prevalência de factores de risco profissionais ou na Promoção da Saúde no Local de Trabalho?

 


 António Sousa-Uva 


O Trabalho tem sido um factor determinante do desenvolvimento económico e social na história da Humanidade e a salubridade dos ambientes de trabalho há muitos séculos que constitui um factor relevante em matéria de saúde e bem-estar das populações, bastando para isso recordar as intoxicações por metais pesados há alguns séculos ou as lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho descritas também há muito mas com uma enorme expressão desde o último quartel do século passado. A Saúde e a Segurança dos Trabalhadores (SST) nos locais de trabalho, incluindo a Promoção e a Protecção da Saúde, podem constituir portanto um importante factor de desenvolvimento das sociedades já que proporcionam um trabalho mais saudável e, por isso, mais produtivo.


Qualquer que seja o modelo conceptual subjacente, a abordagem prática dos aspectos relativos às (inter)relações trabalho/saúde(doença) implica um conhecimento adequado dos factores profissionais em jogo e das respectivas repercussões sobre a saúde dos trabalhadores que se adquire, essencialmente, através da análise do trabalho e que, na perspectiva da saúde e da segurança, se caracteriza sempre por uma grande complexidade. Tal abordagem exige ainda o conhecimento aprofundado das variáveis individuais dos trabalhadores que interagem com os diversos elementos das situações de trabalho, e que delas fazem parte integrante, quer nos aspectos de adversidade (os mais frequentes), quer nas dimensões do conforto ou do bem-estar (quase sempre esquecidas). Estes factores são quase sempre pouco valorizados e substituídos por uma abstracção que alguns denominam "trabalhador médio".


Independentemente da perspectiva que se tenha, o binómio trabalho/saúde(doença) deve merecer mais atenção por parte de todos nós, através de um maior investimento na protecção da saúde de quem trabalha e na promoção da sua saúde. Investimento e não custo, como muitas vezes é encarada, a SST é uma componente essencial do desenvolvimento e do crescimento económico, devendo ser encarada como motor (e não como obstáculo) ao desenvolvimento e ao crescimento sustentado da sociedade. Apesar disso é, quase sempre, perspectivado como se de um imposto se tratasse.


As estratégias de intervenção em SST mais prevalentes assentam, quase sempre, nas dimensões ambiental (Higiene e Segurança do Trabalho) e individual (Medicina do Trabalho) e, mesmo nessas, essencialmente na avaliação e na gestão do risco relacionados com factores de risco químicos, físicos e, muito menos, microbiológicos ou psicossociais. De referir ainda que os riscos relacionados com a actividade (denominados ergonómicos na língua inglesa) ”esgotam-se” nas suas componentes ambientais (stricto sensu) e organizacionais para não dizer que apenas nos “movimentos repetitivos” no caso das até denominadas "lesões por esforços repetidos" (LER) no português do Brasil.


Interessa por isso reinventar novas abordagens das relações entre a saúde (na sua acepção mais ampla) e o mundo do trabalho valorizando mais a saúde dos trabalhadores do que a Saúde Ocupacional em sentido estrito (e hoje corrente) de modo a dar maior importância ao trabalho como agente promotor de saúde e caminhando, dessa forma, para abordagens que se situam para além dos factores (profissionais) de risco. 


Dito de outra forma a Promoção da SST é condição necessária mas não suficiente para olhar as relações trabalho/saúde de forma salutogénica assente na abordagem de tais matérias mais na perspectiva da saúde do que na perspectiva da doença (dominante na dimensão da prevenção dos riscos profissionais). Tal modelo teórico exige de todos formas de planeamento, programação e intervenção muito diferentes do que hoje concentra a atenção dos serviços de prestação de cuidados baseados, no essencial, no "cumprimento" mais adjectivo do que substantivo das obrigações no domínio da SST.


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed, agora amplamente modificado.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Literacia em Saúde Ocupacional: necessidade ou exigência na prevenção dos riscos profissionais e na promoção da saúde no trabalho?

 


Antonio Sousa-Uva

prevenção de riscos

Diversas estimativas de diversas organizações, com destaque para as organizações das Nações Unidas, indicam o sofrimento, a morte e as implicações económicas das “doenças ligadas ao trabalho” e a consequente necessidade da sua prevenção. São, de facto, vários milhões de mortes que, pelo menos no plano teórico, podiam ser totalmente evitadas e, em termos práticos, pelo menos, muito diminuídas. Dito de outra maneira, mais ou menos em cada dois anos, no mundo, perdem a vida a ganhá-la o equivalente à população ativa de Portugal o que constitui uma imagem “esmagadora” e reveladora da necessidade de investir mais na prevenção dos riscos profissionais e na promoção da saúde no trabalho.


Das centenas de milhares de acidentes mortais e das centenas de milhões de acidentes de trabalho que se estima que anualmente ocorram no mundo e das ainda mais prevalentes doenças ligadas ao trabalho  (não só doenças profissionais) também muitas podiam ser evitadas se fossem adoptadas as medidas de prevenção adequadas. Temos, portanto, todos ainda tanto a fazer, já que tudo leva crer que o trabalho, por certo, não acabará.


As taxas de frequência de acidentes de trabalho por regiões do globo são muito díspares o que determina também a necessidade de “globalização” das medidas de proteção e de promoção da saúde de quem trabalha em vez da seleção “natural” dos países de mais baixa “renda” para concentrar a produção mais “agressiva” para a saúde por mais insuficiente regulamentação e controlo (uma espécie de exportação dos riscos profissionais). Por exemplo, as economias mais robustas têm uma população activa semelhante à da Índia, verificando-se, no entanto, que neste país ocorre um número de acidentes (incluindo os mortais) três vezes superior, apesar da economia informal ser intensamente dominante. Não poderia existir uma maior demonstração dos resultados potenciais daquela “globalização” em matéria de prevenção e da necessidade dessa globalização uma vez que a poupança em medidas de saúde e segurança cria concorrência desleal tão "odiada" pelas economias de mercado.


Muita da gestão dos riscos profissionais assenta em medidas centradas nos trabalhadores, mais relacionadas com a Medicina do Trabalho e outras, por outro lado, são mais focadas no ambiente de trabalho.


O “empoderamento” dos trabalhadores ampliando muito a sua literacia em Saúde Ocupacional é, se não ausente, muito incipiente, e deve ser vista como mais uma das principais medidas de aumento da perceção dos riscos profissionais que deveria ser mais “uma linha da frente” no combate às más condições de trabalho na perspetiva da Saúde e da Segurança do Trabalho. Tal, todavia, não é a regra e essa iliteracia é, em si mesmo, um factor de risco adicional.


É, consequentemente, urgente contribuir para a modificação de uma cultura muito dominante do “improviso” tão “impregnada” entre nós, para um clima e uma cultura de saúde e segurança que reduza, tendencialmente a zero, a probabilidade de ocorrência de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. E tal só será alcançado quando as práticas profissionais também exigirem o cumprimento de regras de saúde e segurança nas suas boas práticas e as sociedades se organizarem mais nesse sentido em vez da "imposição" actual que alimenta uma espécie de "jogo do gato e do rato" no cumprimento de normas e obrigações. Paradoxalmente, mas frequentemente, esses gastos são mesmo perspectivados como custos que encarecem o produto e que são um obstáculo à produção


Entre nós, apesar do percurso Europeu feito nas últimas três a quatro décadas, as medidas de organização do combate aos riscos profissionais tardam em “impregnar” a cultura organizacional nacional daquela urgência, circunscrevendo-se muitas vezes a aspetos formais de dispositivos normativos e de controlo do seu cumprimento “administrativo” do tipo "livra coima". 


Salvo melhor opinião, esse é “o caminho das pedras” para lá chegar e uma das maneiras de “tirar pedras” é investir muito, e organizadamente, na literacia dos trabalhadores (e de empregadores) nessas matérias. Caso contrário vai eternizar-se a perspectiva mais frequente de "olhar" a prevenção dos riscos profissionais e a promoção da saúde no trabalho como mais um "imposto" que dificulta o desenvolvimento e a robustez da economia. É que, de facto, o investimento nessa área é mais um elemento de "melhoria contínua" uma vez que não há qualidade do produto sem qualidade do produtor e dos meios de produção. A saúde e segurança do trabalho são, obviamente, disso parte integrante e não podem ser perspectivadas como um obstáculo à saúde financeira do nosso tecido empresarial. Será assim tão difícil perceber isso?  



Bibliografia


  • Sousa-Uva, A (ed). Trabalhadores saudáveis e seguros em locais de trabalho saudáveis e seguros, 2010, Lisboa: Petrica Editores.
  • Sousa-Uva, A (org). Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? 2019, Lisboa: Petrica Editores.
  • Sousa-Uva ALeite ESerranheira F. Políticas de Saúde e Segurança do Trabalho: Obrigação legal ou opção das empresas (e outras organizações) na valorização dos seus recursos humanos? Segurança. 2010;196:12-15.


Nota: Publicado numa versão inicial no blog Safemed agora amplamente modificada.


sábado, 21 de agosto de 2021

Passado e presente da Saúde Ocupacional, perspetivando o seu futuro ...


 
 

Antonio Sousa-Uva


O trabalho pode afetar negativamente a saúde sendo, nos nossos dias, quase negligenciável a valorização do papel promotor de saúde que o trabalho deveria proporcionar. Tal é revelador da preponderância atribuída à componente preventiva dos riscos profissionais em detrimento da componente positiva (promotora) da saúde e do bem-estar, assim como dos aspectos relacionados com o desenvolvimento pessoal dos trabalhadores. Acresce a essa circunstância o maior investimento na prevenção ambiental dos acidentes de trabalho, pouco investimento na prevenção ambiental das doenças profissionais e quase nenhum investimento na prevenção centrada no trabalhador, a maior parte das vezes circunscrita a avaliações pouco (ou nada) específicas das situações concretas de trabalho.

 Qualquer que seja o modelo conceptual subjacente, a abordagem prática dos aspectos relativos às (inter)relações trabalho/saúde (doença) implica um conhecimento adequado dos factores profissionais em jogo e das respetivas repercussões para a saúde dos trabalhadores que se adquire através da análise do trabalho que, na perspectiva da saúde e da segurança, se caracteriza sempre pela sua complexidade (Sousa-Uva e Serranheira, 2019). Mas também exige igual conhecimento aprofundado da saúde individual dos trabalhadores.

Tal abordagem, baseada nos “factores (profissionais) de risco” identificados como responsáveis (reais ou potenciais) pelos efeitos “adversos” para a saúde, incluindo a ocorrência de situações de doença relacionada com o trabalho, constitui a abordagem “tradicional” da Medicina do Trabalho muito focada na vigilância médica (ou, preferivelmente, de saúde) dos trabalhadores. Esse grupo de variáveis tem constituído o alvo privilegiado dos estudos sobre as relações trabalho/doença realizados no âmbito (e na perspectiva) da intervenção mais característica da Medicina do Trabalho, e também da Segurança do Trabalho e da Higiene do Trabalho com o seu foco essencialmente ambiental.

Historicamente convencionámos denominar anteriormente (com alterações entretanto introduzidas) a evolução da Saúde Ocupacional (ou Saúde e Segurança do Trabalho) em cinco grandes períodos (Santos e Sousa Uva, 2009):


  • a fase da Proto-Medicina do Trabalho, desde perto da Antiguidade até à Segunda Grande Guerra;
  • a fase da Medicina do Trabalho Clássica, desde a Segunda Grande Guerra até à década de 1980;
  • a fase da Nova Saúde Ocupacional (SO), desde a década de 1980 até final dos anos de 1990; 
  • a fase da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho (SHSTLT), desde o final da década de 1990 até ao início do século (Saúde e Segurança do Trabalho no séc. XXI);
  • a fase da Saúde (e Segurança) do Trabalhador (que é una e indivisível) também até à actualidade.


De facto, essa evolução enquadra-se no trajecto destas áreas científicas e desenvolvimento de aspectos organizativos ao longo dos tempos (Sousa Uva, 2013;2014). Colocam-se todavia, hoje, muitas questões com o presente e o futuro da Saúde Ocupacional (ou da SHSTLT se se preferir), por exemplo:

A evolução, em 25 anos, de menos de uma centena de especialistas em Medicina do Trabalho para os atuais valores cerca de mais de dez vezes superiores também melhorou na mesma proporção os cuidados de Medicina do Trabalho prestados? 

A criação da carreira médica de Medicina do Trabalho há quase 15 anos e a sua formação específica há quase 10 anos mudou o panorama de exercício da Medicina do Trabalho?

E os mesmos aspectos, nos mesmos 25 anos, nos serviços prestados por Técnicos de Segurança (e Higiene) do Trabalho e outros técnicos?

Estarão as equipas de SO (ou SHSTLT) dotadas dos mais adequados recursos para os desafios colocados pela evolução das empresas (e outras organizações) e pela evolução dos sectores de actividade económica?

Formar para quê? Será possível continuar a definição de planos de ação (muitas vezes pouco mais do que "administrativos") de que não resultam atividades (e muito menos programas concretos de ação) por insuficiente dotação de recursos e de adequados modelos de aplicação?

Bastará o “cumprimento administrativo” da vigilância médica e ambiental para os objetivos atrás referidos da Saúde Ocupacional (ou SHSTLT)?

Sem fortalecimento da componente “inspetiva” valerá a pena investir em programas nacionais de SHSTLT (ou de Saúde Ocupacional) e em melhores e mais capazes técnicos?

Terão a grande maioria dos serviços de prestação de actividades de SHSTLT (integrados ou separados) as melhores práticas?

Será a missão da Saúde Ocupacional (ou SHSTLT) entendida por trabalhadores e empregadores?


Tudo leva a crer que os tempos que se avizinham não sejam promotores de grandes investimentos em SHSTLT, pelo menos enquanto esta for encarada mais como um custo do que como um investimento como, de resto, desde há muito é entendida, senão mesmo como mais um "imposto" aplicado às empresas. E tal acontece num revisitar, muito frequente e ao longo dos tempos, de constantes avanços e recuos determinados por inúmeros factores que não se esgotam apenas nos ciclos económicos. Isso apesar da criação e da divulgação de conhecimento em matéria de prevenção dos riscos profissionais ser cada vez maior e, portanto, se aumentar paulatinamente ainda mais o fosso entre o conhecimento dos fatores de risco (ou perigos) e dos riscos profissionais e a sua aplicação concreta em medidas destinadas à sua prevenção.

Oxalá os cidadãos, principalmente empregadores e trabalhadores e seus representantes, mais do que os técnicos de SHSTLT, coloquem nestes aspetos o grau de prioridade que force, cada vez mais, os políticos a não abandonar a intervenção reguladora que permita que as pessoas que trabalham não percam a vida a ganhá-la (designação deste blog) e que os técnicos exerçam cada vez com mais competência as suas atividades e, não menos importante, em contexto ético adequado. De facto, o enquadramento ético do exercício da SHSTLT é cada vez mais indispensável à missão dos serviços (e empresas) que o praticam.

É que a cultura de saúde e segurança não é mais do que uma miragem quando nem sequer o clima organizacional (e empresarial) é maioritariamente de cumprimento das disposições em matéria de protecção da saúde (e da segurança) dos trabalhadores. Dito de outra forma, a Saúde Ocupacional (ou SHSLT) é maioritariamente um dever, uma obrigação, uma opção ou uma imposição?

Será, talvez, na resposta a essa pergunta que se encontrará (pelo menos parcialmente) um melhor (ou um outro) caminho para a tão "badalada" cultura de saúde (e segurança)?


Nota: Publicado no blog Safemed numa versão inicial, agora amplamente modificada.


Bibliografia

  • Santos CS, Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho: notas historiográficas com futuro. Lisboa: ACT, 2009, 231 pp.
  • Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho em Portugal: revisitando, através de notas soltas, os últimos 50 anos – 1ª parte. Segurança. 2013, 217:3-5.
  • Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho em Portugal: revisitando, através de notas soltas, os últimos 50 anos – 2ª parte. Segurança. 2014, 218:3-5.

  • Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.