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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

A Saúde (e Segurança) Ocupacional(ais) e a policromia de livros

 

 


Antonio Sousa-Uva 

Um recente despacho de julho passado vem criar (para mim) outra comissão para a elaboração de um (outro) Livro Verde da Segurança e Saúde no Trabalho (SST) que, entre os seus objectivos, pretende estimular e promover o debate público sobre esse tema. Tal abrange os parceiros sociais, as entidades da sociedade civil, as universidades, os centros de investigação e outras entidades ou personalidades consideradas de relevo, isto é, todos (já que não há ninguém irrelevante), quer individual, quer coletivamente.

 

Há cerca de 30 anos, na esteira da publicação da Diretiva-quadro sobre SST e toda a legislação portuguesa dela decorrente já me confrontei, com outro livro verde, e até um livro branco, e confesso que, na altura, fui da opinião que não teria sido mau termos tido acesso também a um livro amarelo que pudesse coletar outras opiniões sobre o “estado da arte” da saúde (e a segurança) de quem trabalha, através da coletânea mais ampla de opiniões de quem a isso se dedica.

 

Pelo conteúdo do despacho parece depreender-se que o estímulo que esteve na sua origem se relaciona com o futuro da SST em função da “revolução” que já ocorre (e que se prevê que proximamente se venha a acentuar muito) no mundo do trabalho, decorrente da atual (e futura) evolução tecnológica e organizacional.

 

Entre os cerca de dez “considerandos”, talvez o mais “suis generis” tenha sido o que aborda a antecipação e gestão da mudança dos locais de trabalho no âmbito das alterações climáticas, traduzidas em condições meteorológicas extremas como secas, inundações, tempestades, ondas de calor e exposição aos raios UV e a prevenção de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. E mais ainda a sua influência, com outros aspetos, na valorização da SST como uma prioridade a nível europeu e internacional.

 

Note-se que, por exemplo, o teletrabalho (decorrente da recente experiência pandémica e da referida evolução tecnológica) e a “uberização” não parecem, aparentemente, ter a mesma notoriedade considerativa a jusante daquela decisão ou, tendo, não parecem ter mobilizado suficiente atenção para ter semelhante importância nos considerandos.


Alternativamente, o contrário do “trabalho dá saúde” (“o trabalho mata”) é chamado à colação, ainda que sem o necessário enfoque nas doenças relacionadas com o trabalho que há muito se sabe serem mais protagonistas que os acidentes de trabalho, ainda que a correspondente atenção seja, quase sempre, muito “diluída” ou mesmo” esquecida” devido à intrusão emocional do dramatismo de um acidente de trabalho mortal.  


Com ou sem (melhores ou piores) considerandos oxalá o resultado desta iniciativa possa ser mais valorizado no futuro da Saúde (e Segurança) Ocupacional(ais) do que anteriores iniciativas, mais ou menos policromáticas, e se valorize mais trabalhadores saudáveis e seguros do que locais de trabalho saudáveis e seguros, necessários, mas insuficientes para que tal seja possível. Os aspectos psicossociais são disso um bom exemplo. Espera-se ainda que os ciclos políticos não determinem uma acromia do livro.


Nota: Também publicado na plataforma Healthnews

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Médico do Trabalho ou Médico de Saúde Ocupacional?



Antonio Sousa-Uva

 

Recentemente entendi consultar, numa das minhas redes sociais, os dados referentes às profissões dos leitores das "crónicas técnicas" que venho escrevendo há uns anos e que são quase sempre disponibilizadas também no meu Blog sobre "Medicina do Trabalho e Saúde Ocupacional em migalhas". Constatei que, com grande avanço em relação a outros profissionais, quem as lê mais são os "Médicos de Saúde Ocupacional", aparecendo em segundo lugar, com menos de um terço dos primeiros, os "Médicos".

Tenho vindo a refletir, amplamente, sobre esse tema a que, de resto já anteriormente me referi numa anterior "migalha", a propósito de uma notícia sobre "amamentação e Medicina do Trabalho" num grande Hospital da Região Norte em que se refere também, na notícia, o "Médico de Saúde Ocupacional".

Tal referência, como se mencionou, é, portanto, mesmo da iniciativa dos próprios, e é algo insólita já que há muito, e concretamente há mais de sessenta anos (desde 1962: Decreto 44.537, de 22 de agosto de 1962), essa alusão é feita a “Médico do Trabalho”, independentemente de ser a melhor ou a pior denominação. Posteriormente, toda a legislação desta área se refere sempre ao “Médico do Trabalho”, sendo essa especialidade médica reconhecida pela Ordem dos Médicos desde 1979 (há quase meio século) com a designação "Medicina do Trabalho" (como de resto em França, "Médecine du Travail" ) e não "Medicina de Saúde Ocupacional" (ou "Médecine de Santé au Travail", ainda em França e em outros países francófonos). 

Porque será então que, mesmo em abordagens técnicas, e até por iniciativa dos próprios, se usam indiscriminadamente: médico de Medicina Ocupacional, médico de empresa, médico do trabalho ou, por exemplo, médico de Saúde Ocupacional?

Note-se que ao Psiquiatra não se chama médico de Saúde Mental, ao Obstetra, médico de Saúde Materna ou, por exemplo, ao Pediatra, médico de Saúde Infantil. Porque sucederá o contrário na Medicina do Trabalho?

Talvez a resposta se possa situar na designação dos médicos que exercem Medicina numa área específica a que os anglo-saxónicos denominam "Medicina Social".  Note-se, por exemplo, que é muito comum a referência a "Médico de Saúde Pública" (como de resto em França e outros países francófonos, "Médecin de Santé Publique"). Contrariamente, noutra área da Medicina Social, a Medicina Legal, a referência é feita a “médico legista”, mas, apesar disso, também a "Médico de Medicina Legal".

Será bom recordar que a pluri e a transdisciplinaridade é comum a todas estas áreas técnico-científicas, inclusivamente nas já referidas anteriormente. Claro que tal é mais marcado na denominada Medicina Social do que na Medicina “clínica”, pela sua própria natureza sociológica.

Qual(ais) será(ão) a(s) razão(ões), então, para até os próprios parecerem, aparentemente, preferir aquela designação?

Parece, de resto, suceder o mesmo na área da Enfermagem (Enfermagem de Saúde Ocupacional vs. Enfermagem do Trabalho) ou, por exemplo, na Psicologia (Psicologia da Saúde Ocupacional vs. Psicologia do Trabalho). Refira-se que neste último exemplo poderá fazer sentido essa opção no sentido da sua diferenciação com a Psicologia do Trabalho e das Organizações.

Qualquer que seja a opção seria, ou não, desejável que essa designação fosse sempre a mesma?

Quero crer que uma especialidade médica muito incompreendida por todos, como é o exemplo paradigmático da Medicina do Trabalho, até no meio médico, ganharia muito na definição nítida da sua designação e da sua missão! Caso contrário seria desejável a mudança da denominação dessa especialidade para Saúde Ocupacional, certo? Será isso que se pretende?

A manutenção da denominação “Medicina do Trabalho” (e, por isso, de “Médico do Trabalho”) parece, pois, desejável já que reduz à sua menor expressão possível mais um factor potencial de confundimento, o que não parece ser positivo para a nossa especialidade. Caso contrário, repito, é preferível mudar o nome da especialidade! certo?


Note: Publicado inicialmente na plataforma Healthnews.



quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho: uma sociedade científica cada vez mais cinquentona!




 

Antonio Sousa-Uva
o dia de anos é já esta 4ª feira ...

A Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (SPMT) completará no final do mês (30 de novembro), 58 anos de existência. Nascida, em meados dos anos de 1960, pela mão de menos de duas dezenas de médicos, mantém-se na vanguarda do estudo e da investigação das relações entre o trabalho e a saúde (ou a doença) contribuindo, dessa forma, para a protecção e para a promoção da saúde de quem trabalha. É não só anterior à criação da especialidade na Ordem dos Médicos que comemora os seus 50 anos apenas em 2029 como terá contribuído, inclusivamente e através da sua acção, para a sua criação. De facto, alguns dos seus promotores até são os mesmos.
 
Como tenho vindo a referir de há muito, as sociedades científicas médicas não são sociedades de defesa das condições de exercício de uma qualquer especialidade mas, acima de tudo, espaços isentos e imparciais em que tudo se faz, no caso da SPMT, para criar e, acima de tudo, divulgar conhecimento sobre as interdependências entre o trabalho e a saúde(doença). A sua vocação é pois semelhante à das Universidades, com actividades essencialmente científicas e académicas, o que não anula outras preocupações relacionadas com o seu exercício, designadamente alguns aspectos da sua prática.

Os médicos do trabalho têm o dever de manter a SPMT "bem viva" para cumprir as suas razões fundacionais, designadamente através do aumento da sua influência no contributo para as melhores práticas da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional (ou Saúde do Trabalhador).

A minha responsabilidade de várias décadas no exercício de cargos dirigentes na SPMT, aliada à minha condição de sócio honorário, constituem motivo suficiente para homenagear o seu papel na sociedade portuguesa e, acima de tudo, apelar à responsabilidade que adquiriu na criação e na divulgação do contributo da Medicina do Trabalho para a preservação e manutenção da saúde do trabalhador. O seu aniversário é uma boa ocasião para o fazer.

É uma agremiação, cada vez, mais "cinquentona" e já bem próximo de se tornar "sessentinha"! Vida longa à SPMT, deseja-se, para continuar a servir a Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional cada vez mais e melhor, através da sua contribuição para a criação e a divulgação de conhecimento que suporte o seu exercício baseado, cada vez, mais em evidência científica. Da minha parte continuarei a recordá-lo e a manter esse entusiasmo!

Sintra (algures), 01 de novembro de 2023

domingo, 1 de outubro de 2023

Mais um 4 de outubro aí à porta!

 


Antonio Sousa-Uva


No dia 4 de outubro, em alguns países, celebra-se mais um dia dedicado ao médico do trabalho. 4 de outubro, independentemente do que quer que seja que se associe à data, poderá ser mais uma oportunidade para, pelo menos, reforçar que não faz qualquer sentido que se perca a vida a ganhá-la e que, para que isso aconteça, deve-se contar, entre outros profissionais, com os médicos do trabalho.


Quando se aborda a influência negativa que o trabalho pode ter na saúde, quase sempre, os acidentes de trabalho, principalmente os mortais, são evocados copiosamente. No entanto, muitas outras situações podem acontecer de patologia ligada, de alguma forma, à actividade de trabalho e às condições em que é desempenhada. As doenças profissionais, e outras em que o trabalho não é tão determinante, são disso um outro bom exemplo, ainda que muito esquecido.


Ainda se devia referir que o trabalho é uma prática que nos ocupa muito tempo da nossa vida e deveria ser, por isso, uma boa oportunidade para promover a nossa saúde.


Em qualquer das situações os médicos do trabalho são insubstituíveis para contribuir para uma mais sã harmonia entre o trabalho e a saúde. Apesar disso, no mundo inteiro, a organização de cuidados de Medicina do Trabalho e de Saúde Ocupacional a prestar a trabalhadores nem sempre é feita e essas insuficiências são bem mais  marcadas em situações de trabalho menos diferenciadas e em trabalhadores com mais baixos salários.

Será isso aceitável? 

Fará algum sentido ter de se escolher entre trabalho ou saúde? 

Fará algum sentido desvalorizar a vigilância de saúde de trabalhadores com mais baixos salários?

Porque será tão pouco valorizado o trabalho dos médicos do trabalho?

Porque será que a Medicina do Trabalho é confundida com Medicina no Trabalho, como poderia ser no consultório, no hospital ou no corredor?

Estará isso relacionado com a circunstância do trabalho, principalmente o mais "barato", não ser suficientemente valorizado?

 

4 de outubro de 2023

domingo, 17 de setembro de 2023

Contributo para abordar os “pais” do Serviço Nacional de Saúde

 


 
Antonio Sousa-Uva


É quase regra, em qualquer referência ao Serviço Nacional de Saúde, atribuir a António (Duarte) Arnault a paternidade desse Serviço. Julgo essa referência bem justa, mas ouso aventar que o SNS tem vários pais e não apenas um.

 

Talvez outros tenham sido o Serviço Médico à Periferia, raramente referido, e o internato de Saúde Pública de oito meses do Internato geral de policlínica (24 meses, com dois outros terços de Medicina e Cirurgia) que os médicos, a partir de uma certa altura, tiveram que efectuar para completar, na parte prática, a sua formação, que nunca é referido. De facto, nesses anos do pós-25 de abril, as unidades de prestação de cuidados de saúde com alguma diferenciação, quase que se circunscreviam a Lisboa, Porto e Coimbra.

 

No nosso caso concreto, no início de 1978, a nossa colocação (com outros dois colegas) foi num centro de saúde “inexistente” em Castro Daire, então Castro D’Aire, pequena vila do Distrito de Viseu com poucos milhares de habitantes que apenas tive conhecimento, na palete de escolha, por ter uma estrada não secundária (coloração vermelha nos mapas então existentes) para acesso.

 

Recordam-se muitas horas na Direcção-Geral de Saúde até chegar à fala com o então Director-geral e o intenso trabalho de três jovens médicos, com a ajuda de uma enfermeira de Saúde Pública, de instalação (também física, que até incluiu o transporte individual do material de instalação desde Lisboa) desse Centro de Saúde. Longe estávamos de poder pensar que, dessa forma, contribuíamos, humildemente, para a “cobertura” de centros de saúde do que viria a ser o SNS. Fomos, de facto, não “pais”, mas verdadeiros “operários” do que, por certo existia à data no contexto do que viria a denominar-se posteriormente “cuidados de saúde primários”. Ainda que alguns desses cuidados não fossem de natureza clínica e, talvez por isso, alguns, no meio médico, se referissem aos médicos de Saúde Pública como “os médicos dos croquetes e das retretes”, julgo que se referindo a algum trabalho higio-sanitário dessa intervenção. Experiências muito “impactantes” como agora soi (do latim solere)dizer-se.

 

Mas os principais, ou talvez os verdadeiros pais, terão sido, por certo, os cidadãos portugueses, na instaurada democracia pós-abril, representados pelos seus legítimos representantes escolhidos livremente em eleições igualmente livres. Existirão, por certo, inúmeras formas de juntar a democracia e o serviço nacional de saúde, esta é apenas mais uma!


Nota: Publicado inicialmente na plataforma Healthnews

domingo, 3 de setembro de 2023

Dia mundial da Segurança do Doente (2023): 17 de setembro



Antonio Sousa-Uva


Há mais de 15 anos a Escola Nacional de Saúde Pública (Universidade Nova e Lisboa) criou uma linha robusta de investigação e formação em Segurança do Doente, que integrei com gosto, valorizando, essencialmente, os aspectos relacionados com a sua interface com a Saúde (e Segurança) Ocupacional(ais) dos prestadores de cuidados. De facto, é óbvio não poder haver segurança do doente sem a saúde e segurança dos prestadores de cuidados.

Procurava-se, inicialmente e no essencial, ter conhecimento da dimensão do problema por forma a fomentar a sua prevenção.

Nos vários projectos então desenvolvidos foi também bem notória a necessidade premente de investir no reconhecimento do papel crucial dos doentes e das suas famílias na segurança do doente. Essa mensagem foi muito promovida em várias acções de formação pioneiras nesses temas, destacando-se a necessidade de aumentar a capacitação, com autonomia, dos doentes e suas famílias (em suma, o anglicismo "empoderamento" ...).

Esse é, em boa hora, o tema central da comemoração do actual dia mundial da Segurança do Doente, adoptado há poucos anos pela Organização Mundial da Saúde para aumentar o compromisso de todos com a necessidade de, pelo menos, reduzir potenciais danos relacionados com a prestação de cuidados de saúde já que a sua total evicção parece pouco plausível.

É essa a mensagem central da comemoração deste ano do Dia mundial que todos devemos promover, sem esquecer que tal exige, para além do compromisso dos doentes e das suas famílias, um grande investimento em estruturas organizativas e outros meios que permitam fazer um pouco mais do que falar apenas nessa necessidade. É que falar disso é apenas um meio e não um fim em si mesmo .

Caso contrário pode-se ouvir dizer "falam, falam, falam e não dizem nada ...".

sábado, 2 de setembro de 2023

Reparação de danos das Doenças Profissionais

 



Antonio Sousa-Uva

 

As Listas de Doenças Profissionais são um “instrumento” essencial para a reparação de danos emergentes de doença profissional. Muitas dessas Listas, como é o caso da Portuguesa, pela forma como estão organizadas, também podem contribuir para a prevenção dessas doenças já que constituem uma importante fonte de informação sobre factores de risco e riscos de natureza profissional e, algumas, listam ainda outros aspectos, destacando-se os trabalhos susceptíveis de provocar essas doenças. Essa sistematização de informação sobre doenças profissionais pode ser, consequentemente, uma fonte de informação com indiscutível utilidade para um melhor conhecimento de potenciais situações de risco de doença profissional.

 

Em Portugal há muito que existe uma Lista de Doenças Profissionais, organizada de uma forma semelhante à Lista Francesa, em que se inspirou (como também a Belga), com quase uma centena de quadros e uma sistematização por factores de risco de natureza profissional e órgãos ou sistemas atingidos. De forma remissiva ainda são, adicionalmente, referenciados dois outros capítulos, para além dos cinco principais que a compõem

 

Na União Europeia, em contexto da Segurança Social, é muito frequente o recurso a Recomendações já que, no essencial, tal opção não é tão “directiva” como nas questões económicas e, dessa forma, preservam-se as escolhas nacionais feitas por cada Estado-membro. No que diz respeito à Lista de Doenças Profissionais, a Recomendação 90/326/CEE da Comissão, de 22 de maio de 1990, relativa à Lista Europeia de Doenças Profissionais foi, no contexto sumariamente descrito, aprovada em 1990 e, posteriormente, actualizada em 2003. 

 

Como já acontecia em Portugal, o sistema misto de reconhecimento de doenças profissionais é, nessa Recomendação, aconselhado e as recomendações nela contidas não só abrangem as doenças constantes desse  diploma no seu anexo 1 mas, ainda, o desenvolvimento de sistemas de gestão de informação sobre doenças profissionais bem como de investigação dessas mesmas doenças, com um enfoque especial nas doenças constantes no seu anexo 2 e nas doenças ligadas a factores de risco de natureza psicossocial ligadas ao trabalho. Recomenda ainda um vasto conjunto de disposições tendentes a melhorar os sistemas de saúde no que diz respeito ao diagnóstico e à prevenção das doenças profissionais.

 

Em junho de 2002 também foi aprovada uma Recomendação da OIT, da Conferência Internacional do Trabalho, sobre o mesmo tema, a Recomendação nº 194. Faz-se, nessa Recomendação, um   apelo à integração nas Listas das Doenças Profissionais de cada Estado de incorporar, na medida do possível, as doenças profissionais constantes daquela Recomendação. Em 2010 essa Lista voltou a ser revista e uma nova versão foi aprovada. Essa Lista da OIT está organizada por agentes etiológicos (57 quadros, dos quais 41 causados por factores de risco de natureza química, 7 por agentes físicos e 9 por agentes microbiológicos ou parasitas) e por órgãos-alvo (mais 26 quadros, 12 de doenças respiratórias, 4 de doenças cutâneas, 8 de doenças músculo-esqueléticas e 2 de doenças mentais e do comportamento). Existem ainda, mais dois capítulos adicionais, um sobre cancro profissional (com 21 quadros) e um último denominado “outros” (com dois quadros).


Independentemente de uma reflexão que merece ser feita sobre as opções de sistematização das diversas Listas de Doenças Profissionais e ainda pelas opções feitas em cada um dos quadros, talvez o aspecto mais destacado da referida Recomendação seja a inclusão, pela primeira vez, de um capítulo de “doenças mentais e do comportamento” que não consta da actual Lista de Doenças Profissionais Portuguesa e que, essencialmente, são tipificadas como “doenças relacionadas com o trabalho” (na língua inglesa, work-related diseases) e não como doenças profissionais e, menos ainda, como doenças profissionais “legais”.

 

Em Portugal, há praticamente trinta anos que, com maior ou menor componente técnica ou científica, este tema da revisão da Lista das Doenças Profissionais tem vindo a ser revisitado. Tal é, de resto, consubstanciado na criação de diferentes Comissões (incluindo as técnicas) de Revisão da Lista das Doenças Profissionais.

 

Dada a livre circulação de trabalhadores, a existência de uma Lista Europeia de Doenças Profissionais (Directiva em vez de Recomendação) poderia ou não contribuir para melhores e mais adequadas políticas de Saúde e Segurança na União Europeia?

 

É desejável que, no mínimo, se coloque essa possibilidade e se discuta se tal iniciativa não poderia contribuir para a promoção da Saúde e Segurança dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho no espaço europeu, mais plausível depois do Brexit. Qualquer que seja a decisão que, eventualmente, venha a ser tomada nesse contexto haveria, por certo, maior equidade nos deveres e direitos dos trabalhadores e dos empregadores no âmbito da sua livre circulação no espaço Europeu e um presumível menor desequilíbrio entre as dimensões económica e social da nossa União. De que estamos então à espera para reflectir sobre aquela possibilidade?


Nota: Baseado no artigo: Sousa-Uva A. Lista das Doenças Profissionais: será desejável actualizar? Segurança. 2021; 256:  21-25. Publicado inicialmente na plataforma Healthnews.

 


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Suberose: uma doença profissional descrita por portugueses

 


 

 Antonio Sousa-Uva

Quando pensamos em doenças descritas por portugueses, quase sempre nos vem à memória a polineuropatia amiloidótica familiar, vulgarmente conhecida por paramiloidose ou doença de Corino de Andrade (popularmente a doença dos pezinhos). Como julgo que todos sabemos, é uma forma de amiloidose transmitida geneticamente e identificada e descrita pela primeira vez, nos anos de 1950, por Corino de Andrade, daí o seu nome …

 

Raramente nos lembramos de outra doença, a Suberose, que foi descrita por Vinte-e-Um Mendes em 1947 e por Lopo Cancella de Abreu em 1955, ambos médicos portugueses, que chamaram a atenção para a possibilidade da associação entre a exposição a poeiras de cortiça e a ocorrência de diversos sintomas respiratórios. Estudos posteriores de Ramiro Ávila (que estiveram na origem do seu doutoramento), Thomé Vilar, Telles de Araújo e Cortez Pimentel foram decisivos para o esclarecimento de uma multiplicidade de aspetos epidemiológicos e patogénicos da suberose, incluindo os do foro imunológico que adquirem o maior protagonismo na etiologia da doença.

 

Clinicamente a suberose caracteriza-se por um quadro subagudo ou crónico de alveolite alérgica extrínseca também associada a outros agentes etiológicos, que pode evoluir para a fibrose pulmonar, com envolvimento brônquico muito frequente traduzido em sintomatologia de tosse, expetoração e outra sintomatologia asmatiforme e, por vezes, queixas de irritação nasal, crises esternutatórias e rinorreia. Nos trabalhadores com sinais sugestivos de doença do interstício pulmonar os sintomas dominantes são a tosse, a dispneia progressiva, o emagrecimento e, nos surtos agudos, os acessos febris.

 

Um dos primeiros estudos epidemiológicos realizado em fábricas de cortiça foi publicado em 1973 (há meio século) a partir da realização de um questionário de sintomas, exame clínico, exame espirométrico e microrradiográfico e pesquisa de precipitinas para o Penicillium Frequentans nos seus trabalhadores. Com esses critérios identificou-se, então, uma prevalência de 19% de operários portadores de Suberose o que revela a importância do ambiente profissional na origem da doença em trabalhadores expostos.

 

No nosso caso concreto, nos primeiros anos de atividade clínica, a identificação de alguns casos de Suberose, em trabalhadores de uma fábrica de cortiça no sul de Portugal, que se manifestaram como “síndromes gripais” recidivantes, constituíram um verdadeiro “gatilho” para a especialização em Medicina do Trabalho. Com uma formação médica, em que a Medicina do Trabalho nem era aflorada na formação pré-graduada, tais manifestações clínicas constituíram intrigantes casos clínicos que, estudados com maior profundidade, se vieram a revelar quadros de Suberose todos ocorridos num sector fabril da referida unidade fabril. Qual “toque de Midas”, assim nasceu a curiosidade pela Patologia e a Clínica do Trabalho que determinou a escolha dessa especialidade médica.

 

Ainda que os casos de Suberose não sejam propriamente frequentes, a sua ligação à Medicina Portuguesa, designadamente à Medicina do Trabalho e à Pneumologia, bastaria para lhes ser atribuída mais importância do que lhes é actualmente conferida. Também a polineuropatia amiloidótica familiar não é nada frequente, mesmo num contexto geográfico determinado, e, felizmente, a sua associação à Medicina Portuguesa é com frequência ciclicamente recordada. Talvez a Neurologia seja mais valorizada do que a Medicina do Trabalho, mas, em ambos os casos, deveria ser um pouco mais valorizada a contribuição da Medicina Portuguesa.

 

 

Bibliografia

  • Sousa-Uva A, Graça L. Saúde e Segurança do Trabalho: Glossário. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (Cadernos Avulso 04), 2004.
  • Sousa Uva A. Suberose. In: MENDES, René (Org.). Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador: Conceitos – Definições – História – Cultura. Novo Hamburgo/RS: Proteção Publicações, 2018. 1.280 p. isbn:ISBN: 978-85-67121-01-7.
  • Vilar T, Ávila R. Granulomatoses pulmonares de causa inalatória. Lisboa: Brás Monteiro, 1976.

Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Saúde e Trabalho: a propósito de uma canção italiana de trabalho do séc. XIX


                                                                                         
Antonio Sousa-Uva


Provavelmente uma canção de trabalho italiana do final do século XIX, a Bella ciao, terá sido desenvolvida no trabalho agrícola em arrozais. Entre nós, também Michel Giacometti recolheu múltiplos cantos e ritmos de trabalho nos anos de 1970, alguns dos quais reproduzidos, durante os intervalos da reunião científica, no III Fórum Nacional de Medicina do Trabalho (1995). Algumas do Cante Alentejano que se relaciona com o trabalho agrícola, à data com predominância, por isso, de vozes masculinas. A letra da canção italiana, de resto, a isso se reporta: 

 

" ... Stamattina mi sono alzato, o bella ciao, bella ciao. 
Bella ciao ciao ciao, stamattina mi sono alzato, ho trovato I'invasor!
A lavorare laggiù in risaia
Sotto il sol che picchia giù!
E tra gli insetti e le zanzare, o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, e tra gli insetti e le zanzare, duro lavoro mi tocca far!
Il capo in piedi col suo bastone, o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, il capo in piedi col suo bastone
E noi curve a lavorar!
Lavoro infame, per pochi soldi, o bella ciao bella ciao
Bella ciao ciao ciao, lavoro infame per pochi soldi
E la tua vita a consumar!
Ma verrà il giorno che tutte quante o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, ma verrà il giorno che tutte quante
Lavoreremo in libertà ...!

 

Nela se expressam diversos aspectos das relações laborais, entre os quais vários factores de risco de natureza profissional, designadamente e entre outros, as condições locais concretas, o trabalho físico muito exigente, as condições térmicas desfavoráveis, a exposição a agentes biológicos, as exigências posturais extremas, a força e a repetitividade e os factores psicossociais relacionados com relações de poder e ancorados na intimidação através da ameaça de violência. Estarão representados os cinco grupos de factores de risco profissionais já que é previsível, no contexto em causa, também a exposição a substâncias químicas.

 

Estará por esclarecer, com nitidez, as razões da escolha dessa canção como símbolo de protesto ou de resistência nas duas grandes guerras. O certo, certo, é que, aparentemente, as más condições de trabalho, também na perspectiva da Saúde e Segurança do Trabalho (SST) poderão ter influenciado, total ou parcialmente, a escolha, se a melodia não foi determinante, já que foram desenvolvidos outros textos da letra adaptados a cada situação concreta de "protesto".

 

Talvez a sua utilização copiosa por correntes ideológicas de esquerda ou a sua adopção em movimentos de protesto como o maio de 1968 (e anos que se seguiram) não aconselhem a sua utilização como símbolo das más condições de trabalho na perspectiva da SST mas, no meu caso, atribuo-lhe o simbolismo da necessidade de conceber o trabalho sem riscos profissionais ou, caso tal não seja possível, com medidas de gestão desses riscos e ainda, igualmente se possível, um trabalho satisfatoriamente confortável ou, pelo menos, concebido em função dos trabalhadores concretos que o realizam.

 

Quaisquer que sejam as razões que estarão na base da sua escolha fica mais uma vez expressa a necessidade de melhorar as condições de trabalho na perspectiva da saúde (e da segurança) e do longo caminho que ainda falta percorrer para que esse investimento seja feito de forma mais empenhada. É que o trabalho é humano e, consequentemente, deve ser concebido de forma diversa de considerar as pessoas como se fossem extensão das máquinas (uma espécie de Engenharia Humana ...). De facto, as pessoas são pessoas e as máquinas são máquinas e, definitivamente as máquinas foram feitas para ajudar as pessoas (não foram as pessoas que foram feitas para ajudar as máquinas ...).



terça-feira, 4 de julho de 2023

Trabalhadores e Ambiente psicossocial profissional: a perspectiva “do pé e do sapato”!

 


Antonio Sousa-Uva


No trabalho é, quase sempre, o stress (relacionado com o trabalho, profissional ou ocupacional, como se prefira) que nós associamos ao seu ambiente psicossocial. Claro que existem inúmeros outros riscos profissionais de natureza psicossocial dos quais, nos nossos dias, o burnout é, talvez, senão o mais visível, o mais falado (nem sempre da forma mais correcta) em determinadas profissões e/ou atividades profissionais. Ficam mesmo assim muitos outros por abordar como a violência, os distúrbios da ansiedade ou a depressão, por exemplo.


O stress configura, quase sempre, uma situação de desarmonia entre as necessidades do indivíduo e as exigências do trabalho, ainda que existam muitas outras teorias explicativas da sua etiologia, bem mais complexas e talvez muito mais rigorosas da sua génese.


Em Saúde e Segurança do Trabalho (SST) a abordagem dos fatores de risco profissionais, na perspetiva da sua prevenção, tem-se centrado, essencialmente, nos factores de risco tradicionais, como são os exemplos das substâncias químicas ou dos agentes físicos. Os aspectos psicossociais, por exemplo, relacionados com a organização do trabalho ou as interacções (verticais, ascendentes ou descendentes, ou transversais) entre colegas de trabalho e chefias ou o trabalho de equipa, vão ficando muitas vezes totalmente esquecidos. Acresce a circunstância dos modelos de avaliação e gestão do risco se basearem, essencialmente, naqueles factores de risco tradicionais e não servirem tão bem para os factores psicossociais, microbiológicos e relacionados com a actividade (ou ergonómicos se se preferir).


A grande mudança nos sectores de actividade económica e as grandes transformações da organização do trabalho são dois, entre muitos outros, aspectos que, pelo menos parcialmente, poderão explicar novas interacções entre o trabalho e a saúde(doença) e situações de risco totalmente diversas das clássicas (ou tradicionais)


E o que têm feito as empresas (e outras organizações) para lidar com essa nova realidade?

Serão adequadas as  exigências legais para a prevenção desses riscos psicossociais de natureza profissional?

Serão os modelos actuais de organização da saúde e segurança os mais adequados para lidar com essa nova realidade?

Serão os técnicos de Saúde e Segurança, actualmente em funções, suficientes (e capazes de) para lidar com esses novos riscos?

A área da Saúde Mental e Trabalho tem sido suficientemente valorizada?


A actual perspectiva dominante é a da selecção de trabalhadores, que denominei há uns anos “todo-o-terreno” (“o pé”), para qualquer posto de trabalho (“o sapato”) (Kompier e Levi, 1994) de que a referência à “resiliência” é um bom exemplo. Mas o que fazer? entre outros:  (i) “procurar o sapato certo para o pé certo” (ii) “adaptar o sapato ao pé”; ou (iii) “fortalecer o pé para se adaptar ao sapato”. Qualquer que seja a opção, talvez não fosse má ideia considerar sempre que o “sapato” é mutável em vez de procurar, quase sempre, o seu “pé certo”.


De facto, quase toda a nossa atenção se tem centrado no “pé” (leia-se trabalhador) mesmo que, caricaturalmente, o sapato (posto de trabalho) seja um desadequado ou mesmo desajustado, por exemplo, um número 44 para um pé 36 … É a vetusta perspetiva do trabalho imutável e da “seleção” de trabalhadores para esse trabalho, digamos “esclerosado”. Essa é uma perspetiva muito prevalente, ainda que clássica e pouco adequada, de muitas organizações na admissão de recursos humanos (leia-se “pessoas”) em vez do maior enfoque na boa concepção do trabalho e na prevenção dos riscos profissionais, na promoção da saúde e na manutenção da capacidade trabalho centradas na “pessoa a trabalhar” que é o que é suposto que a Saúde (e Segurança) Ocupaciona(is)l faça(m) (SST). Se assim é, será o nosso actual modelo de prestação de cuidados de SST o mais adequado a essa nova realidade? talvez não seja má ideia reflectir um pouco mais sobre esses aspectos!

 

Bibliografia

  • Kompier M, Levi L. Stress at Work: Causes, Effects, and Prevention. Dublin.European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 1994.



N    Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Contribuição para a história da criação da Carreira Médica de Medicina do Trabalho


 


Antonio Sousa-Uva


Há quem diga que o que fica para a história nem sempre faz jus à verdade. Vem isto a propósito, entre outras, de uma reivindicação pública então assumida para a criação médica da carreira de Medicina do Trabalho da qual fui primeiro subscritor (com outros cinco médicos) em fevereiro de 2006. Dizia-se então:

" ... O desenvolvimento da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores no Local de Trabalho está intimamente ligado à formação de recursos humanos especializados como, Técnicos de Segurança, Higienistas do Trabalho, Ergonomistas, Enfermeiros do Trabalho e Médicos do Trabalho, entre outros. A garantia de formação adequada do ponto de vista técnico e científico dos Médicos do Trabalho, não pode nem deve ser desligada da formação prática apropriada que, nas restantes Carreiras Médicas, é assegurada pelos respectivos Internatos Médicos oficiais.

Não existindo o Internato em Medicina do Trabalho, a Ordem dos Médicos pôs em marcha uma modalidade de formação complementar ao Curso de Medicina do Trabalho que, apesar da boa vontade dos seus promotores, não deixa de colocar os formandos numa situação de clara inferioridade por razões diversas, entre as quais, a mais importante se relaciona com a impossibilidade dos internos se poderem dedicar em pleno à formação/acção em área técnico-científica cada vez mais complexa e mais exigente.

Com a publicação do Decreto-lei nº 488/99, de 17 de Novembro foi estendido à Administração Pública o regime jurídico do enquadramento da segurança, higiene e saúde no trabalho aprovado pelo Decreto-Lei nº 441/91 de 14 de Novembro.

Basta atender à magnitude da força laboral existente nos organismos da administração central, local e regional (cerca de 750 mil trabalhadores) para estimar as necessidades em profissionais de saúde ocupacional de 200 médicos do trabalho, 400 técnicos de higiene e segurança e 200 enfermeiros a tempo inteiro, segunda a proposta legal menos exigente (um médico, dois técnicos de higiene e segurança e um enfermeiro por 3.750 trabalhadores).

No sector da saúde, onde a generalidade das actividades é de risco elevado, a estimativa mais adequada aponta para um médico do trabalho para 1500 trabalhadores. Por consequência serão necessários 80 Médicos do Trabalho para atender aos 120 mil trabalhadores dos Hospitais, Centros de Saúde e outros serviços centrais e regionais, não incluindo a resposta às exigências em cuidados primários de saúde.

As necessidades públicas de médicos do trabalho são razão necessária e suficiente para organizar a Carreira Médica de Medicina do Trabalho, tantas vezes prometida e nunca concretizada. A oficialização desta formação médica não só garantiria a preparação de quadros que permitiriam à Administração Pública o cumprimento da legislação que a abrange, como asseguraria a qualidade da intervenção destes profissionais na salvaguarda da saúde e do bem estar dos trabalhadores da administração central, local e regional, suporte essencial de um desenvolvimento económico e social sustentável.

Os subscritores desta reivindicação estão certos que os responsáveis políticos ao nível do Governo, da Assembleia da República e da Presidência da República não deixarão de levar em linha de conta os mais altos interesses nacionais, cumprindo e fazendo cumprir o imperativo legal e constitucional da defesa e garantia da saúde dos trabalhadores da Administração Pública ...".

A carreira viria a ser criada e alguns anos depois viria a ser aprovado o seu plano de formação que ainda vigora.

Passados estes anos terá a Administração Pública promovido as iniciativas suficientes para melhorar a defesa e garantia da saúde dos seus trabalhadores? Muitas respostas são possíveis, mas todas ajudarão, por certo, à reflexão necessária a compreender o presente para perspectivar um melhor futuro.

Sintra, 28 de junho de 2023

quinta-feira, 1 de junho de 2023

O que se exigia a trabalhadora(e)s! e não foi assim há tanto tempo ...

 


Antonio Sousa-Uva


Não decorreram assim tantos anos quanto se poderia pensar da época em que se impunham medidas laborais com grande impacto na vida da(o)s trabalhadora(e)s. Recentemente adquiri, num alfarrabista, um livro sobre a "A campanha pelo casamento das telefonistas" datado de 1950. 

 

A Liga Portuguesa de Profilaxia Social (julgo que ainda existente e em actividade), autora do livro, que no final deste ano perfaz um século (foi fundada em 1924) iniciou, no primeiro semestre de 1939, uma campanha para anular a proibição de as telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company, Limited poderem casar, que está na origem da edição. Por estranho que hoje tanto pareça, nessa altura essa era uma norma, tal como para as enfermeiras dos Hospitais Civis e outras profissionais, que apenas abrangia mulheres. Tal revela, por certo, a forma como a sociedade, na época, olhava para os cidadãos, no caso em apreço na perspetiva do sexo (ou género se se preferir ...).

 

Tal exemplifica, igualmente, a influência do trabalho na vida da(o)s trabalhadora(e)s e não só sobre a sua saúde.  No 1º semestre de 1939 iniciou-se a campanha que chegou, em dezembro desse ano, à Assembleia Nacional onde foi, inclusivamente, evocada a sua inconstitucionalidade e que, mais tarde, viria a ser revogada. 

 

Aquela obra literária inclui inúmeros depoimentos e artigos de Imprensa a favor da campanha em que inúmeros cidadãos “exigem” a revogação dessa norma, quase sempre cidadãos com grande preponderância na sociedade e igual capacidade de influenciar a opinião em tal domínio. É muito interessante ler (e reler) os argumentos utilizados e tentar compreender a cultura então dominante que determinava tão grande diferença entre homens e mulheres, já que os trabalhadores do sexo masculino nas mesmas funções não sofriam a mesma "punição". 

 

É indispensável ter presente que tal passou-se numa época relativamente recente já que muitos milhares de cidadãos de então ainda hoje estarão vivos. Essa "proximidade" deveria determinar uma reflexão profunda sobre o trabalho humano e, designadamente, sobre a importância que hoje se confere às relações entre a saúde e o trabalho em que muitos ainda consideram que, por exemplo, um acidente de trabalho é fruto do "acaso" ou mesmo de um "azar". Note-se que ao acidente até se denomina “infortúnio” (ou “falta de sorte”). 

 

O que acontece em relação às doenças profissionais e a outras formas de o trabalho interferir na história das doenças ainda é menos valorizado e encarado por muitos como uma vulnerabilidade de alguns trabalhadores que deveria ser minorada por exames de admissão "travestidos" de uma espécie de "seleção".

 

De facto, a literacia no domínio da Saúde Ocupacional não é, entre nós, muito "robusta" e a sua perspetiva é mais frequentemente encarada como um custo do que como um investimento (para muitos mais uma “taxinha” dada a sua obrigatoriedade). De facto, o investimento em trabalhadores saudáveis (“produtores”) nem na perspetiva económica é, muitas vezes, considerado como algo indispensável à qualidade do “produto” que exigiria, por certo, mais atenção.

 

Note-se, como se referiu, que também, apenas a título de exemplo, as enfermeiras dos Hospitais Civis tinham norma similar que também vigorou até bem mais tarde (início dos anos de 1960) desse período pós 2ª Guerra Mundial.

 

Sendo o trabalho indispensável à criação de riqueza, mesmo naquela perspetiva (económica) não seria desejável mais investimento em tal domínio?

 

Estaremos a valorizar suficientemente a saúde (e a segurança) de quem trabalha?

 

Fará algum sentido “perder a vida” a ganhá-la?

 

 

Bibliografia

 

  • Liga Portuguesa de Profilaxia Social. A campanha pelo casamento das telefonistas. Porto: Imprensa Social, 1950.

  • Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.



Nota: Publicado, inicialmente, em Healthnews, informação em saúde.