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sexta-feira, 3 de março de 2023

Uma verdadeira penúria de médicos do trabalho!



Antonio Sousa-Uva


Em Portugal, no final de 2022, existiam cerca de 12 especialistas em Medicina do Trabalho por 100.000 habitantes a que corresponderá, grosseiramente, cerca de 24 por cada 100.000 trabalhadores ativos empregados. Dito de outra forma, aproximadamente um especialista em Medicina do trabalho para mais de 4.000 trabalhadores (sem contar com os médicos não especialistas autorizados a exercer nos termos da lei).

Claro que tal pressuporia que essa disponibilidade corresponderia a todos os especialistas em Medicina do Trabalho a exercer a sua especialidade em tempo completo. Acresce ainda a circunstância de cerca de metade desses especialistas terem mais de 65 anos e de muitos, por certo, poderem ter-se retirado desse exercício profissional. Se esta realidade, cujos contornos são mais ou menos conhecidos há mais de vinte anos, ainda não é suficiente para alguma forma de actuação, então já estarão ultrapassados todos os limites possíveis e imaginários de poder lidar com o agravamento gradual (e há muito insidioso) da falta de especialistas em Medicina do Trabalho.

Ora as disposições técnico-normativas em tal domínio estipulam obrigações aos empregadores de trabalhadores por conta de outrem, e até a trabalhadores independentes, que dificilmente serão atingidas (se é que alguma vez o serão) com a referida realidade concreta portuguesa.

 

No passado, parece que tal realidade não terá sido suficientemente valorizada ou tal interpretação estará errada?

Será que a realidade sumariamente descrita não é suficiente para fazer alguma coisa, independentemente do que seja?

Ainda, independentemente da interpretação dos dados demográficos dos especialistas em Medicina do Trabalho e das opções possíveis para lidar com a realidade, não será a situação suficientemente esclarecedora para a emergência que temos entre mãos?

 

Quero crer que já se estará, por certo, a trabalhar em tão crítica situação e que, breve, breve, emergirão formas de lidar com tão urgente necessidade de “fazer alguma coisa”. Ou vamos esperar outros 20 anos?

 

Bibliografia:


NNota: publicado, previamente, em Healthnews.

 

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Código Internacional de Ética para profissionais de Saúde Ocupacional

 


Antonio Sousa-Uva


As finalidades da Saúde Ocupacional são a saúde e o bem-estar (individual e coletivo) dos trabalhadores sendo expressas em quatro grandes objetivos gerais: (i) a proteção da saúde dos trabalhadores; (ii) a promoção da saúde dos trabalhadores; (iii) a manutenção da capacidade de trabalho e (iv) o estabelecimento e a manutenção de um trabalho saudável e seguro adaptando o trabalho às capacidades dos trabalhadores, tendo presente o seu estado de saúde.

Qualquer trabalhador, independentemente do ramo de atividade económica ou do tipo de empresa onde exerça a sua atividade profissional, pode estar exposto a fatores de risco de natureza profissional (atualmente também designados por perigos) que, como se sabe podem ser de natureza física, química, microbiológica, psicossocial ou relacionados com a atividade.

O Código Internacional de Ética para Profissionais de Saúde no Trabalho foi redigido para esses profissionais em 1987 tendo sido, após discussão pública, aprovado em novembro de 1991. A sua 1ª edição foi publicada em 1992 tanto em língua inglesa como em língua francesa. Atualmente está na sua 3ª edição aprovada em Helsínquia em fevereiro de 2014 e existe uma versão em português do Brasil.

O Código foi desenvolvido com base nos princípios éticos relativos à Saúde Ocupacional, independentemente do seu exercício em contexto de mercado ou em serviços públicos. Pretende enquadrar, em matéria de conduta profissional, os valores e princípios éticos da Saúde Ocupacional e define, basicamente, três aspetos essenciais:


  • a finalidade da Saúde Ocupacional (SO) é estar ao serviço da saúde e do bem-estar (individual e coletivo) dos trabalhadores. O exercício da Saúde e Segurança Ocupacionais (SSO) devem respeitar as mais rigorosas normas profissionais e princípios éticos. Os técnicos de Saúde Ocupacional devem, complementarmente, contribuir para a melhoria da Saúde Pública e do Ambiente;
  • os deveres dos técnicos de SO incluem a proteção da vida e da saúde dos trabalhadores, o respeito pela dignidade humana e a promoção dos mais elevados princípios éticos nas políticas e programas de saúde e segurança do trabalho. Também pertencem a essas obrigações a integridade profissional, a imparcialidade e a proteção da confidencialidade dos dados de saúde e da privacidade dos trabalhadores; 
  • os técnicos de Saúde Ocupacional são peritos que devem possuir total independência técnica no exercício das suas funções. Devem adquirir e manter a competência necessária para exercer as suas obrigações e exigir as condições que lhes permitam cumprir as suas tarefas, de acordo com as boas práticas e a ética profissional. 


O Código estipula um vasto conjunto de missões e obrigações, destacando-se os seguintes aspectos:


  • dar prioridade à prevenção e à rapidez de ação, evitando ambiguidades na transmissão das suas opiniões e recorrendo a outros profissionais ou outros especialistas quando tal for necessário;
  • comunicar por escrito a necessidade de ter em consideração o conhecimento científico sobre riscos profissionais e as normas de prevenção em caso de recusa, ou má vontade, para tomar as medidas de prevenção adequadas em caso de situação de risco para a saúde e segurança;
  • cooperar com o empregador e os trabalhadores assegurando uma formação e informação adequadas e transmitir informação quanto aos níveis de (in)certeza de novos (ou suspeitados) riscos existentes nos locais de trabalho;
  • no contexto da vigilância da saúde, a vigilância biológica deve recorrer a exames que tenham em conta a sensibilidade, a especificidade e o valor preditivo dos testes a realizar. Devem sempre ser preferidos métodos não invasivos e sem (ou com pouco) risco para o trabalhador;
  • os profissionais de Saúde Ocupacional devem agir, antes de qualquer coisa, no interesse na saúde e segurança dos trabalhadores. Devem ainda abster-se de qualquer juízo, conselho ou atividade susceptíveis de pôr em causa a sua imparcialidade e integridade

Dessa forma, aspectos básicos condicionantes do exercício da SO, como o livre acesso aos locais de trabalho, a possibilidade de diagnóstico das situações de risco (risk assessment) de doença profissional e de acidente de trabalho, a análise das situações de trabalho, a realização da análise dos acidentes de trabalho, a definição de normas de saúde e segurança ou a existência de recursos (materiais e humanos) suficientes, são determinantes para o exercício da SO. Dito de outra forma, sem esses condicionantes não é possível, de outra forma, atingir os objectivos da SO.

As instituições públicas e privadas e as organizações que empreguem profissionais de Saúde Ocupacional devem incluir disposições de Ética Profissional de acordo com o Código de Ética da International Commission on Occupational Health (ICOH) nas suas relações contratuais. Apesar deste princípio, não é habitual entre nós, tal referência na prestação de serviços em Saúde e Segurança do Trabalho por oposição à sua mais frequente referência na prestação de serviços nos anos de 1980 ou de 1990.

Os médicos do trabalho (e os outros técnicos de Saúde e Segurança do Trabalho) devem promover a sensibilização de empregados e de empregadores para a indispensabilidade da completa independência profissional e da confidencialidade necessária no contexto da prestação de cuidados de Saúde e Segurança do Trabalho. Só assim é possível respeitar a dignidade humana, respeitar o papel dos serviços de Saúde Ocupacional e cumprir todas as regras de livre concorrência em economias de mercado.

O Código de Ética da ICOH constitui uma referência incontornável para a prática da Saúde Ocupacional (ou da Saúde e Segurança do Trabalho), assinalando-se ainda nesse contexto, e mais uma vez, que a atualização científica e técnica dos médicos do trabalho e dos outros técnicos de SO é a sua primeira obrigação ética.

 

Bibliografia

  • Sousa-Uva, A. Medicina do Trabalho: alguns aspectos éticos e deontológicos. Revista Segurança. 2016;230:14-19.