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sexta-feira, 7 de julho de 2023

Saúde e Trabalho: a propósito de uma canção italiana de trabalho do séc. XIX


                                                                                         
Antonio Sousa-Uva


Provavelmente uma canção de trabalho italiana do final do século XIX, a Bella ciao, terá sido desenvolvida no trabalho agrícola em arrozais. Entre nós, também Michel Giacometti recolheu múltiplos cantos e ritmos de trabalho nos anos de 1970, alguns dos quais reproduzidos, durante os intervalos da reunião científica, no III Fórum Nacional de Medicina do Trabalho (1995). Algumas do Cante Alentejano que se relaciona com o trabalho agrícola, à data com predominância, por isso, de vozes masculinas. A letra da canção italiana, de resto, a isso se reporta: 

 

" ... Stamattina mi sono alzato, o bella ciao, bella ciao. 
Bella ciao ciao ciao, stamattina mi sono alzato, ho trovato I'invasor!
A lavorare laggiù in risaia
Sotto il sol che picchia giù!
E tra gli insetti e le zanzare, o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, e tra gli insetti e le zanzare, duro lavoro mi tocca far!
Il capo in piedi col suo bastone, o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, il capo in piedi col suo bastone
E noi curve a lavorar!
Lavoro infame, per pochi soldi, o bella ciao bella ciao
Bella ciao ciao ciao, lavoro infame per pochi soldi
E la tua vita a consumar!
Ma verrà il giorno che tutte quante o bella ciao, bella ciao
Bella ciao ciao ciao, ma verrà il giorno che tutte quante
Lavoreremo in libertà ...!

 

Nela se expressam diversos aspectos das relações laborais, entre os quais vários factores de risco de natureza profissional, designadamente e entre outros, as condições locais concretas, o trabalho físico muito exigente, as condições térmicas desfavoráveis, a exposição a agentes biológicos, as exigências posturais extremas, a força e a repetitividade e os factores psicossociais relacionados com relações de poder e ancorados na intimidação através da ameaça de violência. Estarão representados os cinco grupos de factores de risco profissionais já que é previsível, no contexto em causa, também a exposição a substâncias químicas.

 

Estará por esclarecer, com nitidez, as razões da escolha dessa canção como símbolo de protesto ou de resistência nas duas grandes guerras. O certo, certo, é que, aparentemente, as más condições de trabalho, também na perspectiva da Saúde e Segurança do Trabalho (SST) poderão ter influenciado, total ou parcialmente, a escolha, se a melodia não foi determinante, já que foram desenvolvidos outros textos da letra adaptados a cada situação concreta de "protesto".

 

Talvez a sua utilização copiosa por correntes ideológicas de esquerda ou a sua adopção em movimentos de protesto como o maio de 1968 (e anos que se seguiram) não aconselhem a sua utilização como símbolo das más condições de trabalho na perspectiva da SST mas, no meu caso, atribuo-lhe o simbolismo da necessidade de conceber o trabalho sem riscos profissionais ou, caso tal não seja possível, com medidas de gestão desses riscos e ainda, igualmente se possível, um trabalho satisfatoriamente confortável ou, pelo menos, concebido em função dos trabalhadores concretos que o realizam.

 

Quaisquer que sejam as razões que estarão na base da sua escolha fica mais uma vez expressa a necessidade de melhorar as condições de trabalho na perspectiva da saúde (e da segurança) e do longo caminho que ainda falta percorrer para que esse investimento seja feito de forma mais empenhada. É que o trabalho é humano e, consequentemente, deve ser concebido de forma diversa de considerar as pessoas como se fossem extensão das máquinas (uma espécie de Engenharia Humana ...). De facto, as pessoas são pessoas e as máquinas são máquinas e, definitivamente as máquinas foram feitas para ajudar as pessoas (não foram as pessoas que foram feitas para ajudar as máquinas ...).



terça-feira, 4 de julho de 2023

Trabalhadores e Ambiente psicossocial profissional: a perspectiva “do pé e do sapato”!

 


Antonio Sousa-Uva


No trabalho é, quase sempre, o stress (relacionado com o trabalho, profissional ou ocupacional, como se prefira) que nós associamos ao seu ambiente psicossocial. Claro que existem inúmeros outros riscos profissionais de natureza psicossocial dos quais, nos nossos dias, o burnout é, talvez, senão o mais visível, o mais falado (nem sempre da forma mais correcta) em determinadas profissões e/ou atividades profissionais. Ficam mesmo assim muitos outros por abordar como a violência, os distúrbios da ansiedade ou a depressão, por exemplo.


O stress configura, quase sempre, uma situação de desarmonia entre as necessidades do indivíduo e as exigências do trabalho, ainda que existam muitas outras teorias explicativas da sua etiologia, bem mais complexas e talvez muito mais rigorosas da sua génese.


Em Saúde e Segurança do Trabalho (SST) a abordagem dos fatores de risco profissionais, na perspetiva da sua prevenção, tem-se centrado, essencialmente, nos factores de risco tradicionais, como são os exemplos das substâncias químicas ou dos agentes físicos. Os aspectos psicossociais, por exemplo, relacionados com a organização do trabalho ou as interacções (verticais, ascendentes ou descendentes, ou transversais) entre colegas de trabalho e chefias ou o trabalho de equipa, vão ficando muitas vezes totalmente esquecidos. Acresce a circunstância dos modelos de avaliação e gestão do risco se basearem, essencialmente, naqueles factores de risco tradicionais e não servirem tão bem para os factores psicossociais, microbiológicos e relacionados com a actividade (ou ergonómicos se se preferir).


A grande mudança nos sectores de actividade económica e as grandes transformações da organização do trabalho são dois, entre muitos outros, aspectos que, pelo menos parcialmente, poderão explicar novas interacções entre o trabalho e a saúde(doença) e situações de risco totalmente diversas das clássicas (ou tradicionais)


E o que têm feito as empresas (e outras organizações) para lidar com essa nova realidade?

Serão adequadas as  exigências legais para a prevenção desses riscos psicossociais de natureza profissional?

Serão os modelos actuais de organização da saúde e segurança os mais adequados para lidar com essa nova realidade?

Serão os técnicos de Saúde e Segurança, actualmente em funções, suficientes (e capazes de) para lidar com esses novos riscos?

A área da Saúde Mental e Trabalho tem sido suficientemente valorizada?


A actual perspectiva dominante é a da selecção de trabalhadores, que denominei há uns anos “todo-o-terreno” (“o pé”), para qualquer posto de trabalho (“o sapato”) (Kompier e Levi, 1994) de que a referência à “resiliência” é um bom exemplo. Mas o que fazer? entre outros:  (i) “procurar o sapato certo para o pé certo” (ii) “adaptar o sapato ao pé”; ou (iii) “fortalecer o pé para se adaptar ao sapato”. Qualquer que seja a opção, talvez não fosse má ideia considerar sempre que o “sapato” é mutável em vez de procurar, quase sempre, o seu “pé certo”.


De facto, quase toda a nossa atenção se tem centrado no “pé” (leia-se trabalhador) mesmo que, caricaturalmente, o sapato (posto de trabalho) seja um desadequado ou mesmo desajustado, por exemplo, um número 44 para um pé 36 … É a vetusta perspetiva do trabalho imutável e da “seleção” de trabalhadores para esse trabalho, digamos “esclerosado”. Essa é uma perspetiva muito prevalente, ainda que clássica e pouco adequada, de muitas organizações na admissão de recursos humanos (leia-se “pessoas”) em vez do maior enfoque na boa concepção do trabalho e na prevenção dos riscos profissionais, na promoção da saúde e na manutenção da capacidade trabalho centradas na “pessoa a trabalhar” que é o que é suposto que a Saúde (e Segurança) Ocupaciona(is)l faça(m) (SST). Se assim é, será o nosso actual modelo de prestação de cuidados de SST o mais adequado a essa nova realidade? talvez não seja má ideia reflectir um pouco mais sobre esses aspectos!

 

Bibliografia

  • Kompier M, Levi L. Stress at Work: Causes, Effects, and Prevention. Dublin.European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 1994.



N    Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.