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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

4 de outubro, dia de comemoração da Medicina do Trabalho



Antonio Sousa-Uva


Na próxima 2ª feira celebra-se mais um dia dedicado às relações entre o trabalho e a saúde/doença. Em alguns países, como é o exemplo do Brasil, esse dia, atribuído ao nascimento do médico italiano Bernardino Ramazzini celebra, efectivamente, o dia do médico do trabalho. Independentemente da maior ou menor correcção do dia de nascimento desse médico italiano (1) atribui-se a ele, no século XVII e início do século XVIII, a chamada de atenção para a relação entre determinadas doenças e determinadas profissões.

A publicação do livro sobre mais de cinquenta doenças dos trabalhadores (De Morbis Artificum Diatriba), em 1700, veio a determinar a necessidade de incluir na anamnese de qualquer exame clínico questões relacionadas com o trabalho. Algumas dessas doenças, como as lesões musculoesqueléticas ligadas ao trabalho (LMELT), principalmente as relacionadas com os gestos repetitivos foram descritas, por exemplo, em copistas, muitos deles monges, que copiavam manuscritos, antes da invenção da imprensa ou da tipografia.

Muitas outras doenças foram nesse livro descritas relacionadas, por exemplo, com diversas profissões como os mineiros, os douradores, os vidreiros, os padeiros ou os carpinteiros.

A chamada de atenção mais frequente daquelas relações entre o trabalho e a saúde/doença esgota-se nos nossos dias, quase sempre, nos acidentes de trabalho, principalmente os mortais que são por vezes notícia em telejornais, ainda que raramente tipificados como tal. Ficam sempre encobertas as doenças profissionais e outras doenças ligadas ao trabalho sempre muito pouco valorizadas.

Apesar disso, se for perspectivada a referida mortalidade, bastará recordar que só o cancro profissional ou o cancro em que os factores de risco profissionais integram a respectiva matriz etiológica são responsáveis por bastante mais óbitos do que os acidentes de trabalho mortais e julgo, pessoalmente, nunca ter ouvido qualquer notícia a esse propósito.

Porque será que não se atribui qualquer importância às doenças profissionais?

Bastará a evocação das doenças profissionais para a sua prevenção?

A baixa atenção que lhes é prestada não se relacionará, no essencial, com as grandes dificuldades no seu reconhecimento já que se confundem com as doenças naturais?

Não faltará criar e divulgar conhecimento sobre as doenças profissionais?

Teremos no nosso Sistema de Saúde dado suficiente atenção e desenvolvido modelos organizacionais para as evitar?

De facto, só se previne o que se conhece e poderá ser essa uma das explicações para a insuficiência reiterada de informação e formação sobre as doenças profissionais (e outras doenças ligadas ao trabalho) e a sua prevenção.

4 de outubro, independentemente do que está na sua origem ou da sua maior ou menor correcção, poderá ser mais uma oportunidade para, pelo menos, adquirir consciência que não faz qualquer sentido que se perca a vida a ganhá-la (2). Como se referiu o número de mortes por doença profissional (ou por outras doenças ligadas ao trabalho) é muito superior à dos acidentes de trabalho mortais e teimar em não o reconhecer é o primeiro passo para adiar a sua prevenção e, dessa forma, perpetuar a sua existência e apoucar os respectivos dispositivos de prevenção. 

Será isso que queremos?

 

(1) Sociedade de Medicina del Trabajo de la Provincia de Buenos Aires. Bernardino Ramazzini: Dissertacion acerca de las enfermedades de los trabajadores. La Plata, 1987.

(2) Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Qual o significado de APTIDÃO PARA O TRABALHO?

 


António Sousa-Uva


A aptidão para o trabalho é um conceito muito mal compreendido e, frequentemente, interpretado como algo que apenas tem em conta aspectos de natureza individual. Tem sempre uma componente temporal e, no essencial, define a capacidade de um trabalhador desempenhar um “determinado trabalho” e, nunca todo e qualquer trabalho. Dito de outra forma, pode-se estar apto para um determinado trabalho e inapto para outro, em função da avaliação da (in)compatibilidade entre a situação de saúde do trabalhador e as exigências concretas do trabalho. Em determinadas empresas a interpretação pode até ser de se estar (apto ou não) para trabalhar nessa empresa, independentemente do posto de trabalho concreto.


O conceito de aptidão (ability, na língua inglesa) para o trabalho (fitness for work, ainda na língua inglesa) está pois intrinsecamente associado à sua componente complementar (incapacidade, “disability” na língua inglesa) de desempenhar as funções profissionais, o que, por sua vez, se associa ainda ao conceito de deficiência (“impairment”). Todavia, a avaliação é essencialmente sobre a adaptação da situação de saúde à situação de trabalho (como se referiu na língua inglesa fitness for Work).

 

Os conceitos de incapacidade, deficiência e inaptidão não são pois indistintos já que significam situações díspares. Dito de outra forma, o conceito de inaptidão para o trabalho está intimamente associado à interdependência entre a deficiência (ou a incapacidade) e as exigências do trabalho, não sendo portanto possível deliberar nessa matéria sem conhecimento dessas duas realidades concretas. Mais uma vez, e dito de outra forma, essa peritagem é feita para um trabalhador concreto numa, igualmente concreta, situação de trabalho.

 

Um trabalhador portador de uma deficiência (ou de uma incapacidade) pode portanto ser totalmente apto para o exercício de uma actividade profissional em que as exigências do trabalho não “interfiram” com a situação de saúde do trabalhador. A designação genérica de deficiência, isto é, a perda (ou anomalia) de uma estrutura anatómica, função fisiológica ou psicológica pode, portanto, não interferir com a actividade profissional de um indivíduo. Um exemplo dessa situação poderá ser a de um professor que, por exemplo, apresente uma paresia dos membros inferiores, o que, não interfere, decisivamente, com as exigências do seu trabalho (excepcionando as acessibilidades). Se o mesmo trabalhador fosse eletricista de alta tensão, tal “deficiência” resultaria, por certo, numa incapacidade, isto é, numa limitação ou desvantagem (o que os ingleses denominam “handicap”).

 

A aptidão para o trabalho está pois associada, para além da avaliação da situação de saúde à capacidade de trabalho do trabalhador, à atividade profissional e às condições de trabalho concretas desse trabalhador e numa determinada empresa (ou organização). A aptidão não é portanto "universal" e, outro aspecto muito importante, é referenciada a uma determinada unidade de tempo.

 

O médico do trabalho não deve portanto decidir sobre a aptidão para o trabalho apenas com base numa determinada situação de natureza médica mas, sobretudo, basear a sua decisão na interpretação da interacção dessa situação com as exigências concretas de trabalho, que a situação de trabalho determina e na situação de saúde concreta determinada pela (eventual) doença que o trabalhador seja portador.  

 

A aptidão para o trabalho não é portanto uma decisão para “todo e qualquer trabalho” mas sempre uma decisão, num determinado momento, sobre a compatibilidade entre a situação de saúde do trabalhador, nesse mesmo momento, e as exigências do trabalho que efectivamente executa (“trabalho real”) e não do denominado trabalho prescrito. O que interessa, portanto, é o que o trabalhador faz concretamente e não aquilo que é suposto que faça (na língua inglesa, "job description").

 

Figurativamente é frequente recorrer-se à imagem de uma chave e de uma fechadura “compatíveis” ou de uma balança em que os seus dois “braços” estão equilibrados para ilustrar o acto de decidir sobre a aptidão para o trabalho, a cargo exclusivamente da Medicina do Trabalho, ainda que com a colaboração indispensável de outras áreas científicas. 


Tal enquadramento, repita-se, é totalmente diferente da perspetiva muito frequente de que o médico do trabalho avalia a situação de saúde sem ter em conta as exigências do trabalho, atestando a robustez física e mental através, entre outros, de uma avaliação clínica e de meios complementares analíticos, de imagem e/ou de função que nada têm a ver com as situações concretas de trabalho. Tem sido por mim usado, em sentido caricatural, a imagem de “carimbar” o ovo para consumo para me referir a uma avaliação global do estado de saúde, com maior ou menor recurso a complementaridades de diversa natureza para "atestar" que "o ovo está em condições para ser consumido".

 

Não! A aptidão tem que ser feita à medida (na língua inglesa, "taylor made") e, portanto, a situação de saúde que uma doença determina (e não a doença propriamente) pode corresponder à aptidão para um determinado trabalho ou à inaptidão para outro trabalho concreto. Sem compreender isso dificilmente se compreenderá para que serve a vigilância médica (ou vigilância de saúde) em Medicina do Trabalho: prevenir potenciais riscos (profissionais) para a saúde e promover a saúde de quem trabalha potenciando a manutenção da sua capacidade de trabalho. E essa peritagem, recorde-se, é da sua exclusiva competência desde os primórdios dessa especialidade médica. 


De facto, longe vão os tempos em que a aptidão para o trabalho se circunscrevia a atestar que o trabalhador pertencia a um determinado grupo etário em que a legislação lhe permitia exercer a sua actividade profissional como sucedeu no século XIX.

 




Bibliografia

  • Sousa-Uva A.  Medicina do Trabalho: o que é e para que serve? In: António Sousa-Uva: Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? Lisboa: Petrica, 1ª edição, 2019. pp. 19-25
  • Sacadura-Leite E, Sousa-Uva A. Aptidão para o Trabalho: conclusão de um exame médico de Medicina do Trabalho ou ponto de partida para a manutenção da capacidade de trabalho? In António Sousa-Uva: Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? Lisboa: Petrica, 1ª edição, 2019. pp. 37-43


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed numa versão agora actualizada.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Promoção da Saúde e Segurança baseada na prevalência de factores de risco profissionais ou na Promoção da Saúde no Local de Trabalho?

 


 António Sousa-Uva 


O Trabalho tem sido um factor determinante do desenvolvimento económico e social na história da Humanidade e a salubridade dos ambientes de trabalho há muitos séculos que constitui um factor relevante em matéria de saúde e bem-estar das populações, bastando para isso recordar as intoxicações por metais pesados há alguns séculos ou as lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho descritas também há muito mas com uma enorme expressão desde o último quartel do século passado. A Saúde e a Segurança dos Trabalhadores (SST) nos locais de trabalho, incluindo a Promoção e a Protecção da Saúde, podem constituir portanto um importante factor de desenvolvimento das sociedades já que proporcionam um trabalho mais saudável e, por isso, mais produtivo.


Qualquer que seja o modelo conceptual subjacente, a abordagem prática dos aspectos relativos às (inter)relações trabalho/saúde(doença) implica um conhecimento adequado dos factores profissionais em jogo e das respectivas repercussões sobre a saúde dos trabalhadores que se adquire, essencialmente, através da análise do trabalho e que, na perspectiva da saúde e da segurança, se caracteriza sempre por uma grande complexidade. Tal abordagem exige ainda o conhecimento aprofundado das variáveis individuais dos trabalhadores que interagem com os diversos elementos das situações de trabalho, e que delas fazem parte integrante, quer nos aspectos de adversidade (os mais frequentes), quer nas dimensões do conforto ou do bem-estar (quase sempre esquecidas). Estes factores são quase sempre pouco valorizados e substituídos por uma abstracção que alguns denominam "trabalhador médio".


Independentemente da perspectiva que se tenha, o binómio trabalho/saúde(doença) deve merecer mais atenção por parte de todos nós, através de um maior investimento na protecção da saúde de quem trabalha e na promoção da sua saúde. Investimento e não custo, como muitas vezes é encarada, a SST é uma componente essencial do desenvolvimento e do crescimento económico, devendo ser encarada como motor (e não como obstáculo) ao desenvolvimento e ao crescimento sustentado da sociedade. Apesar disso é, quase sempre, perspectivado como se de um imposto se tratasse.


As estratégias de intervenção em SST mais prevalentes assentam, quase sempre, nas dimensões ambiental (Higiene e Segurança do Trabalho) e individual (Medicina do Trabalho) e, mesmo nessas, essencialmente na avaliação e na gestão do risco relacionados com factores de risco químicos, físicos e, muito menos, microbiológicos ou psicossociais. De referir ainda que os riscos relacionados com a actividade (denominados ergonómicos na língua inglesa) ”esgotam-se” nas suas componentes ambientais (stricto sensu) e organizacionais para não dizer que apenas nos “movimentos repetitivos” no caso das até denominadas "lesões por esforços repetidos" (LER) no português do Brasil.


Interessa por isso reinventar novas abordagens das relações entre a saúde (na sua acepção mais ampla) e o mundo do trabalho valorizando mais a saúde dos trabalhadores do que a Saúde Ocupacional em sentido estrito (e hoje corrente) de modo a dar maior importância ao trabalho como agente promotor de saúde e caminhando, dessa forma, para abordagens que se situam para além dos factores (profissionais) de risco. 


Dito de outra forma a Promoção da SST é condição necessária mas não suficiente para olhar as relações trabalho/saúde de forma salutogénica assente na abordagem de tais matérias mais na perspectiva da saúde do que na perspectiva da doença (dominante na dimensão da prevenção dos riscos profissionais). Tal modelo teórico exige de todos formas de planeamento, programação e intervenção muito diferentes do que hoje concentra a atenção dos serviços de prestação de cuidados baseados, no essencial, no "cumprimento" mais adjectivo do que substantivo das obrigações no domínio da SST.


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed, agora amplamente modificado.