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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Trabalho com saúde vs. “”ou trabalho ou saúde”


Antonio Sousa-Uva 

A abordagem prática dos aspetos relativos às (inter)relações trabalho/saúde(doença) implica um conhecimento adequado dos fatores profissionais implicados e das respetivas repercussões na saúde dos trabalhadores. Tal  adquire-se através da análise do trabalho e que, na perspetiva da saúde e da segurança, se caracteriza sempre por conhecer o trabalho. Tal abordagem exige ainda o conhecimento aprofundado das variáveis individuais dos trabalhadores e da sua situação de saúde que interagem com os diversos elementos das situações de trabalho, e que delas fazem parte integrante, quer nos aspectos de adversidade (os mais frequentes), quer nas dimensões do conforto ou do bem-estar (reiteradamente esquecidas).

As estratégias de intervenção em Saúde e Segurança do Trabalho (SST) mais prevalentes assentam, quase sempre, nas dimensões ambiental (Higiene e Segurança do Trabalho) e individual (Medicina do Trabalho e Enfermagem do Trabalho, por exemplo) e, mesmo nessas, centram-se, essencialmente, na avaliação e gestão do risco relacionados com fatores de risco químicos e físicos e muito menos, nos microbiológicos, relacionados com a actividade ou psicossociais. De referir ainda que, regra geral, os riscos relacionados com a atividade “esgotam-se” nas suas componentes ambientais (stricto sensu) e organizacionais para não dizer que apenas nos “movimentos repetitivos”. E mesmo nesse âmbito quase nunca de forma integrada e com muito pouco diálogo, mesmo entre os profissionais implicados e com recurso a "grelhas de observação" quase sempre inadequadas às situações em análise

Interessa por isso reinventar novas abordagens das relações entre a saúde (na sua aceção mais ampla) e o mundo do trabalho valorizando mais a saúde dos trabalhadores do que a Saúde Ocupacional em sentido estrito (e hoje corrente) ou mesmo da Saúde e Segurança do Trabalho, de modo a dar maior importância ao trabalho como agente promotor de saúde e caminhando, dessa forma, para abordagens que se situam para além dos fatores (profissionais) de risco e mesmo nesses, numa perspectiva tradicional. Dito de outra forma, a Promoção da SST é condição necessária mas não suficiente para uma perspectiva salutogénica assente na abordagem dessas matérias mais na perspetiva da saúde do que na perspetiva da doença ou da lesão (dominante na dimensão tradicional referida da prevenção dos riscos profissionais).

O argumento mais frequente para o adiamento dessa abordagem é a sua morosidade e complexidade, pelo que se torna urgente que se comece, quanto antes, e se fomente a integração de várias outras áreas de conhecimento e não só da Medicina do Trabalho e da Segurança do Trabalho para melhor “gerir” essa complexidade e essa morosidade. Caso contrário esse tema nunca se desembaraçará da urgência da prevenção dos riscos profissionais e, essencialmente, os mais tradicionais. A dicotomia "ou trabalho ou saúde" tem que ser definitivamente abandonada e substituída pela necessidade inadiável de conceber o trabalho para os trabalhadores disponíveis e sempre numa perspectiva mais salutogénica que patogénica.


Nota: Publicado também em Healthnews.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional e violência contra os profissionais de saúde no Local de Trabalho



Antonio Sousa-Uva

Os factores de risco de natureza psicossocial têm vindo, gradualmente, a ter uma maior visibilidade no contexto dos factores de risco de natureza profissional. Por exemplo, nos profissionais de saúde, em todo o ano passado, foram registados na plataforma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) 961 episódios de violência (825 em 2020) e, este ano, até final de outubro, já foram registados 1347. Os episódios de agressão registados nos primeiros dez meses de 2022 são em médicos e enfermeiros (32 e 31%, respectivamente) e 29% em assistentes técnicos. A violência psicológica (67%) é a que mais se evidencia nos dados dos episódios de violência notificados até outubro de 2022, seguindo-se o assédio (14%) e violência física (13%). Estarão a aumentar esses episódios ou o que aumenta é a sua notificação?

 

Os trabalhadores da saúde apresentam, de facto, um risco elevado de violência no local de trabalho relacionado mais com a sua actividade de trabalho do que com as respectivas condições de trabalho. Dito de outra forma, a prevenção desses riscos deve centrar-se mais nessa actividade que, por isso, deve ser exercida tendo presente esse risco concreto e também tendo presentes, por certo, as condições em que se exerce. Para além do agravamento jurídico das penas desses actos, ter-se-ão posto em marcha os necessários mecanismos de prevenção?

 

Recentemente foi por nós realizado um estudo que teve como objetivo caracterizar a violência física e verbal num hospital público da Grande Lisboa na perspectiva de propor algumas estratégias de prevenção e vigilância em Saúde Ocupacional. O estudo, observacional e transversal, foi realizado através da aplicação de um inquérito qualitativo com entrevistas em profundidade a seis trabalhadores e um inquérito quantitativo, com questionários, a 32 trabalhadores. Os principais resultados assinalam uma insuficiência de respostas organizacionais adequadas num contexto de livre acesso a zonas de trabalho e ainda a insuficiente protecção por agentes de segurança.


A pouca familiaridade com os procedimentos internos de notificação foi identificada como uma área carenciada de melhoria, bem como a pouca expressividade das estratégias intervencionistas direcionadas a incrementar essas melhorias. Ter-se-ão desencadeado as acções necessárias à melhoria dessa familiaridade por parte dos profissionais de saúde? As instituições do Ministério da Saúde estarão a colaborar na avaliação e no diagnóstico das condições de segurança dos serviços, bem como a promover medidas de prevenção da violência, a par do necessário apoio jurídico e psicossocial aos profissionais vítimas de agressão?

 

Concluiu-se, então, que existia ainda uma importante carência de programas específicos projetados para aumentar as respectivas taxas de notificação que, em si mesmo, nada previnem, mas que possibilitam um melhor conhecimento da realidade concreta, esse sim potencial promotor de medidas de prevenção.


Claro que o Observatório Nacional da Violência Contra os Profissionais de Saúde no Local de Trabalho, desenvolvido pela DGS, há poucos anos, com o objetivo de disponibilizar um sistema de notificação online dos episódios de violência, bem como a divulgação de documentação e instrumentos de referência e a partilha de boas práticas tem tido, por certo, uma utilidade indiscutível e deve, por isso, ser saudado. Também o aumento da oferta de apoio psicossocial aos profissionais de saúde é indispensável, mas será suficiente o investimento que se tem feito em medidas de prevenção de natureza mais primária? Não deveríamos aumentar o nosso empenho no incremento de mais medidas de prevenção desses acontecimentos?

 

Bibliografia

  • Antão H, Sacadura-Leite E, Manzano M, Pinote S, Relvas R, Serranheira F, Sousa-Uva A. Workplace Violence in Healthcare: A Single-Center Study on Causes, Consequences and Prevention Strategies. Acta Médica Portuguesa. 2020;33(1):31-37. 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional e Assédio moral no Local de Trabalho

 

 Antonio Sousa-Uva

 

O conceito de “doença ligada ao trabalho” engloba todas as formas em que o trabalho pode interferir na saúde, em termos de efeitos adversos, independentemente da sua influência se situar na etiologia, na evolução, no desfecho ou no agravamento das doenças.

As questões relacionadas com os aspectos de natureza psicossocial existentes nas nossas organizações e agora intituladas “emergentes”, e nomeadamente nas empresas, coloca hoje desafios de enorme complexidade aos médicos do trabalho e a outros profissionais de saúde ocupacional.

Têm sido usadas inúmeras formas de fazer referência ao acto de provocar uma violência psicológica no trabalho, de forma repetida e sistemática, com o objectivo de humilhar, isolar e desacreditar um trabalhador, a maioria das quais em língua inglesa: (i) bulling; (ii) mobbing; (iii) moral harassment; (iv) psychological violence ou, por exemplo, (v) psychological harassment. Para além das diferenças que podem ser evocadas em relação a qualquer uma das designações, o assédio moral caracteriza-se, entre outros e no essencial, por de forma reiterada:


  1.     impedir o trabalhador de se exprimir;
  2.     isolar o trabalhador;
  3.     desconsiderar o trabalhador em presença de colegas de trabalho
  4.     desacreditar o trabalhador no seu trabalho;
  5.     comprometer a saúde do trabalhador;
  6.     ………………………………………………………………

 

O trabalhador assediado, para que o assédio moral produza efeito, inicia uma cascata de acontecimentos que, no essencial, provocam perda de autoestima e de autoconfiança que podem levar a níveis impulsionadores, por exemplo, de grandes graus de ansiedade e até a eventuais comportamentos de adição.

 

As consequências negativas para a saúde do assédio moral podem envolver sintomatologia somática e psicológica. Para além de serem frequentes as cefaleias, as alterações gastro-intestinais e as repercussões sobre o aparelho cardio-vascular os sintomas de atingimento da saúde mental são igualmente muito frequentes e vão desde as alterações do sono, a dificuldade de concentração e a perda de confiança até à ocorrência de pensamentos suicidários, agressividade e sintomas paranóides, depressivos e obsessivos.

Apesar da extrema complexidade de qualquer situação concreta, no assédio moral existe sempre um determinado contexto (profissional), um assediador e um assediado. O médico do trabalho, no âmbito da sua actividade na prevenção dos riscos profissionais (que deve incluir também a colaboração na prevenção dessas situações de “violência psicológica) pode (e deve) ser um potencial “apoio” para o assediado se a sua colaboração em acções de prevenção não tiver sido eficaz na sua prevenção.

A sua resposta é, no entanto, ainda mais transdisciplinar e mais dependente da respectiva cultura organizacional onde se deve situar a mais importante (e principal) resposta a tal tipo de situações.


Nota: Publicado, inicialmente, em Healthnews.

 

domingo, 6 de novembro de 2022

A Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho faz 57 anos

                                                       

 


                                                         Antonio Sousa-Uva (sócio honorário da SPMT)

 

A Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (SPMT) completará no final do mês (30 de novembro), 57 anos de existência. Nascida pela mão de um pouco mais de uma dezena de médicos, nos anos de 1960, mantém-se na vanguarda do estudo e da investigação das relações entre o trabalho e a saúde (ou a doença).

 

Como se referia no anterior aniversário, deve-se recordar que as sociedades científicas não são sociedades de defesa das condições de exercício de uma qualquer actividade mas, acima de tudo, espaços isentos e imparciais em que tudo se faz, no caso da SPMT, para perseguir um mais robusto conhecimento das interdependências entre o trabalho e a saúde(doença) com o objectivo de proteger e promover a saúde de quem trabalha e contribuir para a manutenção da sua capacidade de trabalho. A sua vocação é pois semelhante à das Universidades, com actividades essencialmente académicas, o que não anula outras preocupações relacionadas com o seu exercício.

  

Oxalá os médicos do trabalho mantenham uma SPMT com uma vida longa para cumprir as suas razões fundacionais e, dessa forma, contribuirem para melhores condições de trabalho na perspectiva da saúde (e da segurança) do trabalho indispensáveis em qualquer posto ou situação de trabalho. É isso que todos esperamos!


06 de novembro de 2022

 

Bibliografia

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Dois séculos da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa

 


                                                                                          Antonio Sousa-Uva

 

Este ano (e neste quarto trimestre) a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa perfaz 200 anos de existência. Desde a sua fundação, em 1 de dezembro de 1822, que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa tem por finalidade contribuir para o aperfeiçoamento dos conhecimentos médicos em todas as suas dimensões.

 

A Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, cuja história deve constituir motivo de orgulho para todos nós, é, pois, das agremiações médicas mais antigas do mundo, sendo criada no mesmo ano do aparecimento da sua homóloga francesa (a Academia de Medicina de Paris), dez anos antes da British Medical Association e precedendo, também, em vinte e cinco anos a American Medical Association. É certo que a Sociedade das Ciências Médicas, na primeira e efémera fase da sua existência, durou apenas seis meses, não resistindo - a par de todas as restantes instituições liberais daquela época - ao movimento insurreccional restaurador do absolutismo.

 

Foi berçário, em 1965, da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (prestes a completar 57 anos) que, entretanto, se autonomizou, como foi o caso de outras dezenas de sociedades médicas, algumas extintas, como a Sociedade Portuguesa de Saúde Pública (este ano renascida fora do seu seio e, aparentemente, sem relação com a sua antecessora). Tal política ocorreu na sequência das suas revisões estatutárias de 1955 que incluíram disposições de promoção da criação de secções especializadas.

Deve-se assinalar ainda a publicação do seu periódico “Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa” que iniciou a sua publicação em 1835 e que ainda mantém o seu título original e que antecedeu em 44 anos o “La Presse Médicale”.

É ainda no seu seio que nasceu a Academia Portuguesa de Medicina, em 30 de julho de 1991 que está na origem da Academia Nacional de Medicina de Portugal em 2007.

 

Bibliografia

  • Faria M. Contribuição da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho para o desenvolvimento da Saúde Ocupacional em Portugal. Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. 1986;CL (1):40-42.
  • Sousa Uva A. Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 1965-2005: quatro décadas de promoção da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2005 (SPMT 1965/2005) 69 pp.
  • Sousa Uva A. Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (1965 – 2015): Meio século de dedicação à Medicina do Trabalho e à Saúde Ocupacional   Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2015.
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Nota - Publicado, inicialmente, em Healthnews.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A Saúde num relance: a propósito do excesso de mortalidade




Antonio Sousa-Uva


Portugal foi, em 1948, um dos países fundadores da Organização Europeia de Cooperação Económica. Mais tarde, em 1960, com os Estados Unidos da América e o Canadá, os dezoito Estados fundadores originaram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) que a substituiu.


A OCDE publica, regularmente, o Health at a Glance com um conjunto interessante de indicadores de saúde que constitui há muito, para quem se dedica a esta área, um documento de consulta obrigatória. Para quem não se recorda, na primavera e outono de 2020, muito se falou do excesso de mortalidade a propósito da COVID-19, voltando agora, de novo, esse tema “a inflamar”. Tal, anteriormente, era abordado basicamente a propósito das ondas de calor (por exemplo, o índice Ícaro ou GATO, seu acrónimo em inglês).


É muito interessante verificar, mais uma vez e agora de forma mais consolidada, a discrepância entre a perspectiva política e a dos estudiosos e investigadores em relação a muitas matérias e, designadamente àquele excesso de mortalidade cuja explicação está, por certo, muito para além de abordagens baseadas em perspectivas demasiado simplistas. Apesar da muita “verborreia” sobre essa matéria, não parece restar dúvida que a COVID-19, directa ou indirectamente, poderá ter contribuído, de alguma forma, para um aumento de cerca de 16% do número esperado de mortes em 2020 e primeiro semestre de 2021.

Mais ainda, em 24 de 30 países a esperança de vida diminuiu (entre nós com repercussão na idade da reforma para 2023), destacando-se os EUA (menos 1,6 anos) e a Espanha (menos 1,5 anos), já que mais de 90% dos óbitos ocorreram em maiores de 60 anos e, claro e como sempre, em populações mais vulneráveis pelas mais variadas razões.

Menos falado tem sido o impacto na Saúde Mental e a “COVID crónica” (ou Long – quão longo? – COVID), esta última podendo atingir mais de um terço desses doentes. E menos ainda se tem falado das relações trabalho/saúde(doença) relacionadas, por exemplo, com respostas à pandemia, como o trabalho à distância.

No nosso caso, logo na primavera de 2020, também investigamos os aspectos relacionados com as repercussões na Saúde Mental dos médicos e de outros profissionais de saúde e também alguns aspectos relacionados com o teletrabalho. Estas matérias serão ainda, por certo, alvo de inúmeros outros estudos mais robustos e carecem, portanto, da criação de mais (e melhor) informação.

O que parece certo é que a actual pandemia teve, para além das consequências directas na saúde dos cidadãos, diversas outras repercussões indirectas, muitas delas ainda por esclarecer. Indirectamente parece óbvio o impacto na prestação de cuidados de saúde, por exemplo, das consequências do adiamento da precocidade dos diagnósticos (não só de cancro, que é disso um marcante exemplo). Mas a grande questão que “fermenta” é se esses atrasos se poderão relacionar com o actual aumento de mortalidade? Saberemos o suficiente sobre essas interdependências? O que estamos a fazer para criar e divulgar mais conhecimento nessa matéria?

 Por outro lado, simultaneamente, terá por certo ocorrido uma redução da mortalidade por acidentes rodoviários e de trabalho e por outras doenças infecciosas transmitidas por via aérea.  Certo é que, em 2020, nos países da OCDE e com os dados disponíveis, ocorreu um excesso de 1,8 milhões de mortes, em comparação com a média dos cinco anos anteriores (ainda em média, cerca de mais 11% de óbitos) e que tal achado deve determinar a criação de mais conhecimento nesse âmbito.

O impacto de uma pequena partícula viral ainda é incompletamente conhecido e irá muito para além das mais de seis centenas de milhões de casos “oficiais” de doença e dos mais de 6,5 milhões de óbitos. O Health at a Glance 2021 já indicia bem o início desse importante impacto na nossa saúde.

Os dados preliminares de 2021 apontam para o excesso de mortalidade, mais nos grupos etários mais velhos (65 ou mais anos) que, em alguns países e com se referiu, é superior a 15%, como por exemplo na nossa vizinha Espanha. Por cá, veremos o que sucederá, o que, por certo, também dependerá das respostas a ser dadas pelo nosso sistema de saúde (que, esclareça-se pela “enésima” vez, não é sinónimo de serviço nacional de saúde).


Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.

domingo, 2 de outubro de 2022

A obrigação da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional: “a ocasião faz o ladrão” ou “a imposição leva ao faz de conta”?

 


                                                                                                                                                                                                                                                                        Antonio Sousa-Uva

Na Europa existe há muito, e em Portugal há mais de meio século, a obrigação da prestação de cuidados de Medicina do Trabalho, e mais recentemente de Saúde Ocupacional (ou se se preferir de Saúde e Segurança do Trabalho), determinado por legislação específica nesse domínio, abrangendo ao longo do tempo mais ou menos empresas e trabalhadores por conta de outrem.

Tal pressupõe que, dada a aplicação de coimas por incumprimento, a inexistência desse enquadramento legal determinaria que muitas entidades patronais não organizassem (ou adquirissem) tal tipo de estrutura organizativa para tal finalidade. Dito de forma díspar, essa organização é “imposta” como qualquer outro imposto, por exemplo em matéria fiscal.

Compreende-se o legislador que cria regras em tal domínio para evitar, abordemos de forma redutora aquelas obrigações, que a vigilância da saúde de quem trabalha e do seu ambiente de trabalho perspectivam a prevenção dos riscos profissionais centrada no trabalhador (Medicina do Trabalho ou Enfermagem do Trabalho, por exemplo) ou no ambiente de trabalho. Neste caso, quer na prevenção ambiental de acidentes de trabalho (Segurança do Trabalho), quer na prevenção ambiental de doenças profissionais (Higiene do Trabalho).

Assim sendo, as disposições legais determinam penalidades (coimas) para os incumpridores de algumas obrigações concretas que objectivam aquelas finalidades que, regra geral e no essencial, são avaliadas mais na forma do que no conteúdo. Dito de outra forma, aquelas penalidades vão-se circunscrever, no essencial, mais a actividades concretas do que às razões da sua "prescrição" o que pode encerrar, eventualmente, alguma dose de perversidade.

Esta situação traduz-se, por isso, muitas vezes, num jogo do “gato e do rato” em que o que, de facto, acontece é um “faz de conta” que, no essencial, cumpra (ou pareça cumprir) a imposição, mais do que a preocupação de proteger (e de promover) a saúde de quem trabalha.

O aqui retratado, que até pode ser interpretado como pessimista, ou até mesmo como caricatural, é, parece, a regra “arredando” a perspectiva que empresas saudáveis, económica e financeiramente, necessitam de trabalhadores saudáveis e seguros, já que a qualidade do “produto” não é perspectivável sem a qualidade do produtor (sendo, obviamente, a sua saúde e segurança, uma sua componente indiscutível). Não existe, portanto, uma verdadeira "autodeterminação empresarial" maioritária da sua necessidade, sobrepondo-se, quase sempre, a componente "impositiva".

Mais de meio século da aplicação do modelo sumariamente (ou até caricaturalmente) descrito não será suficiente para se repensar o paradigma existente?

Terá a Administração Pública investido o suficiente e feito o necessário para que essa matéria seja mais valorizada por todos os envolvidos (ou “players”)?

Deverão ser os técnicos de Saúde Ocupacional os principais “arautos” (ou mesmo pregoeiros ou até "vendedores") da protecção da saúde (e da segurança) de quem trabalha? Ou essa preocupação não poderá ser interpretada como a defesa dos seus interesses concretos?

Parece que há muito a fazer neste domínio e que empregados, empregadores, técnicos e “reguladores” deveriam, no essencial e salvo melhor opinião, fazer mais (competentemente) e falar um pouco menos … talvez os resultados fossem um pouco melhores!

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Formação especializada em Medicina do Trabalho: os seus fundamentos e a sua prática!



Antonio Sousa-Uva


O ensino da Medicina do Trabalho (e também da Saúde Ocupacional) estão associados, em termos históricos, à formação especializada de médicos do trabalho, através de um curso que constituía habilitação legal para o exercício da Medicina do Trabalho em serviços médicos do trabalho, inicialmente no âmbito das disposições técnico-normativas e jurídicas de 1962 sobre a prevenção da silicose, nas minas, nos estabelecimentos industriais e em outros locais de trabalho em que existia o risco daquela doença profissional. De facto, em consequência disso, é logo em 1963 que o Instituto de Higiene Dr. Ricardo Jorge o desenvolve como especialização do Curso de Medicina Sanitária.

O plano de estudos do Curso de Medicina do Trabalho do ano lectivo de 1964/65 incluía então as seguintes nove disciplinas, nem todas da área científica específica:

  • Higiene Social e Administração Sanitária
  • Epidemiologia e Técnica de Profilaxia
  • Demografia e Estatística Sanitária
  • Técnica de Saneamento
  • Fisiologia do Trabalho e Ergonomia
  • Patologia e Clínica do Trabalho
  • Higiene Industrial
  • Organização e Administração da Medicina do Trabalho
  • Legislação do Trabalho

Em 1966 é criada a Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical, transitando o referido Curso de Medicina do Trabalho para essa instituição. O diploma legal regulamentar cria então a cadeira de Higiene e Medicina do Trabalho, subdividida em cinco disciplinas: Higiene do Trabalho; Fisiologia do Trabalho e Ergonomia; Patologia e Clínica do Trabalho; Organização dos Serviços Médicos do Trabalho e Legislação do Trabalho.

Mais tarde, em 1972, é criada a Escola Nacional de Saúde Pública, inicialmente, na dependência do Instituto Nacional de Saúde (INSA) e, a partir de 1976, de forma autónoma, ano em que deixou de constituir o ramo de ensino do INSA.

Passarão mais de vinte anos até que sejam criados outros dois Cursos de Medicina do Trabalho, em 1989, o primeiro dos quais na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e o segundo na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Naquele mesmo ano, o então novo curso da Universidade de Coimbra “… é considerado habilitação profissional suficiente para o exercício da Medicina do Trabalho …”, deixando a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) de ter o monopólio da formação de médicos do trabalho em Portugal que até então detinha.

Só em 1991, o Curso de Medicina do Trabalho da Universidade do Porto tem o mesmo reconhecimento, em ambos os casos com o apoio da ENSP que até participou activamente, através dos seus docentes, na sua área específica nesse processo.

Entretanto, em 1979, é criada a especialidade de Medicina do Trabalho na Ordem dos Médicos mantendo-se, todavia, a necessidade do curso para o exercício profissional, vindo o enquadramento legal, só nos anos de 1990, a referir-se ao reconhecimento dessa especialidade para o seu exercício legal que incluía, desde o seu início, o curso no seu plano de formação especializada.

Já neste século, há menos de duas décadas, é criada a carreira médica de Medicina do Trabalho (quinta carreira médica na Administração Pública) e definido o seu plano de formação que mantém alguma formação teórica e teórico-prática, mantendo-se aquelas referidas unidades universitárias creditadas para tal ensino no contexto do respectivo internato. Não será alheio a isso o reiterado esforço de diversas entidades (individuais e colectivas) das quais se deve destacar o papel desempenhado pela Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho.

Estes são, entre outros por certo, alguns dos grandes marcos do caminho percorrido pela formação especializada para o exercício da Medicina do Trabalho em Portugal que actualmente é, essencialmente, marcada pelo exercício orientado no âmbito do respectivo internato. E como continuará este caminho?

Não se sabendo, espera-se que, qualquer que seja, continue a promover, cada vez com mais qualidade e competência, o que se pretende atingir com a sua acção: a promoção da saúde de quem trabalha, a prevenção dos riscos profissionais e a contribuição para a manutenção da capacidade de trabalho. Qualquer um desses objectivos necessitam do concurso de outras áreas do saber e, por isso, o contexto mais amplo da Saúde Ocupacional (na sua perspectiva mais abrangente ou Saúde e Segurança do Trabalho) deve constituir o “suporte” (ou o sustentáculo) para o seu exercício.


Nota: publicado inicialmente na plataforma Healthnews

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

A propósito do Dia mundial do cancro do pulmão é bom que não se esqueça a sua potencial etiologia profissional!

                                


                                                  

                                                                                    Antonio Sousa-Uva 


Anualmente, celebra-se o dia mundial do cancro do pulmão no dia 1 de agosto, chamando a atenção para um cancro muito comum e muitas vezes com mau prognóstico.

O grande enfoque é feito, e muito bem, nos hábitos tabágicos que têm a responsabilidade da esmagadora maioria desses cancros. Seria bom, no entanto, chamar a atenção para a sua potencial etiologia profissional e para colocar o mesmo empenho colocado na evicção dos hábitos tabágicos na necessidade da correcta gestão do risco da exposição profissional a esses agentes profissionais.

Talvez o amianto constitua o exemplo mais mediatizado dessa etiologia profissional que, nesse caso também causa o cancro da pleura (ou mesotelioma) e cancros com outras localizações.

Apesar disso, é muito pouco frequente, a propósito do cancro do pulmão de origem profissional, a referência a essa potencial origem profissional que não se esgota no amianto e que, tal como o fumo do cigarro (ou de outro tabaco), é totalmente prevenível. Acresce a circunstância dessa opção, nesses casos, não ser individual e de até acontecerem, embasbacassem-se, em trabalhadores que ganham a vida com o seu trabalho. Alguns, no entanto, em vez de ganhar a vida, perdem-na.

O dia mundial do cancro do pulmão é mais uma oportunidade para colocar na agenda a necessidade que as exigências do trabalho não só não impliquem risco para a saúde de quem trabalha, mas que constituam mesmo situações de promoção da saúde de quem contribui tanto para o bem comum através da sua participação na criação de riqueza que é o verdadeiro “adubo” das sociedades desenvolvidas.

Não será isso suficiente para chamar a atenção para a potencial origem profissional do cancro do pulmão?


Nota: Publicado inicialmente na plataforma Healthnews

sábado, 9 de julho de 2022

Mais um dia mundial da Alergia, sem esquecer a alergia profissional!



Antonio Sousa-Uva


No dia 8 de julho comemora-se o dia mundial da Alergia por iniciativa da OMS e de outra organização. Pretende-se chamar a atenção para as doenças alérgicas que têm aumentado (poderão afectar uma em cada três pessoas) o que poderá estar ligado, nomeadamente a alterações ambientais e aos nossos estilos de vida.

A alergia medicamentosa e alimentar vem adquirindo importância crescente. A rinite é tão frequente que muitas vezes nem determina a procura de cuidados, e em quase metade dos casos é acompanhada de asma, essa sim mais valorizada pelos cidadãos.
A asma é, no essencial, uma obstrução reversível do fluxo de ar nas vias respiratórias e/ou uma hiper-reactividade brônquica causada por factores de risco. A asma profissional, desde a última metade do século passado tem vindo a adquirir uma importância crescente entre as doenças profissionais. 
Estima-se que 5 a 10% de todas as asmas dos adultos possam ter origem profissional e, em certas atividades profissionais, essa proporção pode ainda ser maior como é o exemplo paradigmático da indústria da panificação (a denominada asma dos padeiros). Independentemente de ser mais ou menos conhecida a sua frequência, a asma profissional é, por certo, insuficientemente conhecida, uma vez que o estabelecimento da sua relação com o trabalho nem sempre é valorizado.
São conhecidos muitos factores de risco de asma profissional. A indústria da madeira, a soldadura, a indústria têxtil, a indústria química e farmacêutica e a indústria dos plásticos e detergentes são, entre muitos outros, sectores económicos muito associados a um elevado número de casos de asma (e também de rinite). 
A presença de um quadro clínico de asma num indivíduo adulto deverá, sistematicamente, chamar a atenção para a hipótese da sua causa ser profissional, principalmente se associado, por exemplo, a rinite ou conjuntivite que, muitas vezes, a precedem ou podem aparecer simultaneamente. 

08 de julho de 2022


Bibliografia

  • Uva, A S. O médico do trabalho e as doenças alérgicas profissionais. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2000 (Cadernos Avulso 2).
  • Uva, A S. – Asma profissional: da teoria à prática. Revista Portuguesa de Pneumologia. 2008;XIV(Supl 1):S61–S70.
  • Uva A S, Leite E S. Doenças respiratórias profissionais: mais vale prevenir que remediar. Saúde & Trabalho. 2005;5:89-112.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Medicina do Trabalho vs. Medicina no Trabalho




Antonio Sousa-Uva 

 

Durante cerca de quarenta anos um grupo de profissionais de Medicina do Trabalho de início e, depois, da área mais vasta da Saúde Ocupacional (ou Saúde e Segurança do Trabalho) que a integra, têm tentado, reiteradamente, que não se referia “Medicina do Trabalho” como sinónimo de “Medicina no Trabalho”. A argumentação centra-se no facto do objecto de estudo e de intervenção ser a influência negativa que o trabalho pode ter nas pessoas a trabalhar e não tanto no estado de saúde(doença) dos trabalhadores, independentemente do trabalho que realizam.

 

Ainda nos dias de hoje não é raro ouvir referências à Medicina no Trabalho nas empresas (e outras organizações), nos media, na internet e até, pasme-se, em abordagens técnicas dessa área de conhecimentos, independentemente do meio usado.

 

Claro que, quase sempre, essa referência é feita não valorizando a subtileza dessa diferença. O que alguns de nós não prevíamos era que pudéssemos chegar a situações (muito) frequentes dessa prática se tornar amiudadamente repetida. Repare-se no entanto que aquelas contrações advêm da preposição “de” e “em” que são bem diversas uma da outra.

 

Existirão, por certo, muitas explicações possíveis para a utilização indiscriminada dessas designações, como por exemplo:

 

Pouca importância atribuída à língua Portuguesa!

 

Pouca importância atribuída, pela sociedade em geral e até por empregadores e empregados, a essa área médica!

 

Exercício ilegal (algum) dessa prática ou até más práticas (algumas) dessa especialidade médica!

 

Imposição legal de organização de serviços, também de Medicina do Trabalho!

 

Utilização desses recursos médicos para “selecção” de trabalhadores e/ou controlo de absentismo!

 

Qualquer que seja(m) a(s) explicação(ões) para a “perpetuação” dessas denominações como sinónimos, mais recentemente surgiram ainda mais duas outras designações: “Medicina de Saúde Ocupacional” e o inglesismo “Medicina Ocupacional”.

 

Tal “floresta” de designações não ajuda muito a uma abordagem clarividente da designação correcta desta especialidade médica. Repare-se, no entanto que em outros países da Europa do Sul tais designações (Medicina del Lavoro em Itália, Medicina del Trabajo em Espanha ou Médecine du Travail em França) não sofrem dessa mesma falta de clarividência.

 

Não será isso suficiente para, de forma definitiva, denominar a especialidade médica que se dedica à prevenção médica dos riscos profissionais, à promoção da saúde no trabalho e à manutenção da capacidade de trabalho como Medicina do Trabalho? Acha-se que é mais do que suficiente!


Nota: Publicado, inicialmente, em Healthnews.