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quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A prevenção das doenças profissionais usada como “papel de embrulho”?

 


Antonio Sousa-Uva

 

A mortalidade por doenças profissionais (e outras doenças “ligadas” ao trabalho) é muito superior à mortalidade por acidentes de trabalho, apesar de ser frequente a referência quase que apenas a estes últimos. Seria, para tal, apenas necessário referir que a mortalidade por cancro profissional, ou por outros cancros “ligados” ao trabalho, supera largamente a dos acidentes de trabalho com desfecho mortal e, apesar disso, pouco se fala disso.


Claro que as relações trabalho/lesão (que ocorrem num acidente de trabalho) são mais fáceis de compreender relativamente a relações trabalho/doença, de maior complexidade, que se expressam, a maior parte das vezes, alguns (às vezes muitos ou mesmo imensos) anos após a exposição e, quase sempre, com uma expressão clínica que se confunde com as doenças naturais. Por vezes até a sua manifestação pode  só ocorrer após a cessação da actividade profissional que esteve na sua origem, o que determinou, na nossa actividade de médico do trabalho, a realização de exames periódicos a trabalhadores já reformados com anterior exposição a metais pesados.


Sabe-se que, por  exemplo, em 2016 terão, por estimativa, ocorrido quase dois milhões de mortes (1.880.000) e quase 90 milhões de DALYs (disability-adjusted life years) que são atribuídos à exposição a um determinado conjunto de factores de risco profissionais1. Dessas mortes, cerca de 81% relacionam-se com doenças (e 70% com os DALYs) e, pasme-se, as lesões por acidente, os complementares 19%.


Qual será então a razão (ou as razões) para tão escandaloso "apagão"? Poderão estar na sua origem pecaminosas expressões de afirmação de poder de quem deveria focar mais a sua acção nos resultados da sua intervenção do que na defesa dos seus interesses?


As doenças dos trabalhadores, concretamente as profissionais e as outras “ligadas” ao trabalho, são conhecidas há milénios, ainda que se atribua há menos tempo (cerca de três séculos) a Bernardino Ramazzini a primeira publicação de uma obra sobre essa matéria (referem-se, entre muitas outras, duas traduções em língua portuguesa e espanhola)2-3. À data, o autor vaticinou, nesse seu livro, a possível  utilidade prevista para a sua obra como papel para embrulhar salsichas, sal ou especiarias! Visão profética, por certo, do valor ainda atribuído à matéria da Saúde do Trabalhador pelas empresas e outras organizações, senão mesmo pelas sociedades (mesmo do 1º mundo!).


Dito de outra forma poderá continuar a matéria a ser "papel de embrulho" em detrimento de valores díspares relacionados com verdadeiros "jogos de poder" de, muitas vezes, "para-quedistas" numa espécie de "baldio" que se fosse galinheiro também albergaria, dessa forma, a raposa?


Naquela obra de Ramazzini descreviam-se, há mais de três séculos, mais de cinco dezenas de grupos de doenças profissionais, organizadas, no essencial, por profissões e actividades profissionais. Essa descrição, na sua dimensão clínica, mantém-se mesmo, no essencial, actual para muitas dessas doenças. Também  a sua prevenção continua a ser insuficiente!


As mais complexas relações causa-efeito das doenças profissionais em relação aos acidentes de trabalho não podem, perpetuamente, justificar a insuficiente atenção que, entre nós, lhes é dedicada já que, como se referiu, em cada cinco mortes causadas por factores de risco de natureza profissional, quatro têm na sua origem doenças causadas, total ou parcialmente, pelo trabalho. Perante essa realidade não seria indispensável actuar mais no trabalho do que nos "actores" com essa responsabilidade? Ou, adicionalmente, mais no trabalho que nos trabalhadores? Ou, ainda, mais a preveni-las do que evocar a sua prevenção?


A sugestão que se faz com este pequeno texto (ou "migalha") é de contribuir para a reflexão sobre as razões que estarão na origem dessa tão chocante pouca valorização. É que, com tanto "papel de embrulho", há condições de trabalho e actividades que levam a que muita gente possa acabar por perder a vida a ganhá-la4


Será isso aceitável quando, pelo menos no plano teórico, os riscos profissionais são totalmente preveníveis? Será isso admissível, até numa perspectiva económica, considerando ainda os seus custos em sofrimento e até em morte? E numa perspectiva mais intimista, não seremos todos um pouco coniventes com o actual status quo?


Pelo menos no meu caso, há quase meio século que a isso me dedico e não pretendo ser conivente com a actual situação. E este texto, acredito, pode contribuir de forma humilde para o processo urgente de, definitivamente, focar mais a nossa atenção nos trabalhadores do que nos prestadores ou, até mesmo, nos "reguladores". "Papel de embrulho" da protecção da saúde (e da segurança) de quem trabalha é que não!

 

Bibliografia

  1. WHO/ILO joint estimates of the work-related burden of disease and injury, 2000-2016: global monitoring report. Geneva: World Health Organization and the International Labour Organization, 2021.
  2. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrêla. S. Paulo: Fundacentro, 4ª ed., 2016, 322 pp. ISBN 978-85-98117-82-9
  3. Sociedade de Medicina del Trabajo de la Provincia de Buenos Aires. Bernardino Ramazzini: Dissertacion acerca de las enfermedades de los trabajadores. La Plata, 1987
  4. Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.