Translate

domingo, 17 de setembro de 2023

Contributo para abordar os “pais” do Serviço Nacional de Saúde

 


 
Antonio Sousa-Uva


É quase regra, em qualquer referência ao Serviço Nacional de Saúde, atribuir a António (Duarte) Arnault a paternidade desse Serviço. Julgo essa referência bem justa, mas ouso aventar que o SNS tem vários pais e não apenas um.

 

Talvez outros tenham sido o Serviço Médico à Periferia, raramente referido, e o internato de Saúde Pública de oito meses do Internato geral de policlínica (24 meses, com dois outros terços de Medicina e Cirurgia) que os médicos, a partir de uma certa altura, tiveram que efectuar para completar, na parte prática, a sua formação, que nunca é referido. De facto, nesses anos do pós-25 de abril, as unidades de prestação de cuidados de saúde com alguma diferenciação, quase que se circunscreviam a Lisboa, Porto e Coimbra.

 

No nosso caso concreto, no início de 1978, a nossa colocação (com outros dois colegas) foi num centro de saúde “inexistente” em Castro Daire, então Castro D’Aire, pequena vila do Distrito de Viseu com poucos milhares de habitantes que apenas tive conhecimento, na palete de escolha, por ter uma estrada não secundária (coloração vermelha nos mapas então existentes) para acesso.

 

Recordam-se muitas horas na Direcção-Geral de Saúde até chegar à fala com o então Director-geral e o intenso trabalho de três jovens médicos, com a ajuda de uma enfermeira de Saúde Pública, de instalação (também física, que até incluiu o transporte individual do material de instalação desde Lisboa) desse Centro de Saúde. Longe estávamos de poder pensar que, dessa forma, contribuíamos, humildemente, para a “cobertura” de centros de saúde do que viria a ser o SNS. Fomos, de facto, não “pais”, mas verdadeiros “operários” do que, por certo existia à data no contexto do que viria a denominar-se posteriormente “cuidados de saúde primários”. Ainda que alguns desses cuidados não fossem de natureza clínica e, talvez por isso, alguns, no meio médico, se referissem aos médicos de Saúde Pública como “os médicos dos croquetes e das retretes”, julgo que se referindo a algum trabalho higio-sanitário dessa intervenção. Experiências muito “impactantes” como agora soi (do latim solere)dizer-se.

 

Mas os principais, ou talvez os verdadeiros pais, terão sido, por certo, os cidadãos portugueses, na instaurada democracia pós-abril, representados pelos seus legítimos representantes escolhidos livremente em eleições igualmente livres. Existirão, por certo, inúmeras formas de juntar a democracia e o serviço nacional de saúde, esta é apenas mais uma!


Nota: Publicado inicialmente na plataforma Healthnews

domingo, 3 de setembro de 2023

Dia mundial da Segurança do Doente (2023): 17 de setembro



Antonio Sousa-Uva


Há mais de 15 anos a Escola Nacional de Saúde Pública (Universidade Nova e Lisboa) criou uma linha robusta de investigação e formação em Segurança do Doente, que integrei com gosto, valorizando, essencialmente, os aspectos relacionados com a sua interface com a Saúde (e Segurança) Ocupacional(ais) dos prestadores de cuidados. De facto, é óbvio não poder haver segurança do doente sem a saúde e segurança dos prestadores de cuidados.

Procurava-se, inicialmente e no essencial, ter conhecimento da dimensão do problema por forma a fomentar a sua prevenção.

Nos vários projectos então desenvolvidos foi também bem notória a necessidade premente de investir no reconhecimento do papel crucial dos doentes e das suas famílias na segurança do doente. Essa mensagem foi muito promovida em várias acções de formação pioneiras nesses temas, destacando-se a necessidade de aumentar a capacitação, com autonomia, dos doentes e suas famílias (em suma, o anglicismo "empoderamento" ...).

Esse é, em boa hora, o tema central da comemoração do actual dia mundial da Segurança do Doente, adoptado há poucos anos pela Organização Mundial da Saúde para aumentar o compromisso de todos com a necessidade de, pelo menos, reduzir potenciais danos relacionados com a prestação de cuidados de saúde já que a sua total evicção parece pouco plausível.

É essa a mensagem central da comemoração deste ano do Dia mundial que todos devemos promover, sem esquecer que tal exige, para além do compromisso dos doentes e das suas famílias, um grande investimento em estruturas organizativas e outros meios que permitam fazer um pouco mais do que falar apenas nessa necessidade. É que falar disso é apenas um meio e não um fim em si mesmo .

Caso contrário pode-se ouvir dizer "falam, falam, falam e não dizem nada ...".

sábado, 2 de setembro de 2023

Reparação de danos das Doenças Profissionais

 



Antonio Sousa-Uva

 

As Listas de Doenças Profissionais são um “instrumento” essencial para a reparação de danos emergentes de doença profissional. Muitas dessas Listas, como é o caso da Portuguesa, pela forma como estão organizadas, também podem contribuir para a prevenção dessas doenças já que constituem uma importante fonte de informação sobre factores de risco e riscos de natureza profissional e, algumas, listam ainda outros aspectos, destacando-se os trabalhos susceptíveis de provocar essas doenças. Essa sistematização de informação sobre doenças profissionais pode ser, consequentemente, uma fonte de informação com indiscutível utilidade para um melhor conhecimento de potenciais situações de risco de doença profissional.

 

Em Portugal há muito que existe uma Lista de Doenças Profissionais, organizada de uma forma semelhante à Lista Francesa, em que se inspirou (como também a Belga), com quase uma centena de quadros e uma sistematização por factores de risco de natureza profissional e órgãos ou sistemas atingidos. De forma remissiva ainda são, adicionalmente, referenciados dois outros capítulos, para além dos cinco principais que a compõem

 

Na União Europeia, em contexto da Segurança Social, é muito frequente o recurso a Recomendações já que, no essencial, tal opção não é tão “directiva” como nas questões económicas e, dessa forma, preservam-se as escolhas nacionais feitas por cada Estado-membro. No que diz respeito à Lista de Doenças Profissionais, a Recomendação 90/326/CEE da Comissão, de 22 de maio de 1990, relativa à Lista Europeia de Doenças Profissionais foi, no contexto sumariamente descrito, aprovada em 1990 e, posteriormente, actualizada em 2003. 

 

Como já acontecia em Portugal, o sistema misto de reconhecimento de doenças profissionais é, nessa Recomendação, aconselhado e as recomendações nela contidas não só abrangem as doenças constantes desse  diploma no seu anexo 1 mas, ainda, o desenvolvimento de sistemas de gestão de informação sobre doenças profissionais bem como de investigação dessas mesmas doenças, com um enfoque especial nas doenças constantes no seu anexo 2 e nas doenças ligadas a factores de risco de natureza psicossocial ligadas ao trabalho. Recomenda ainda um vasto conjunto de disposições tendentes a melhorar os sistemas de saúde no que diz respeito ao diagnóstico e à prevenção das doenças profissionais.

 

Em junho de 2002 também foi aprovada uma Recomendação da OIT, da Conferência Internacional do Trabalho, sobre o mesmo tema, a Recomendação nº 194. Faz-se, nessa Recomendação, um   apelo à integração nas Listas das Doenças Profissionais de cada Estado de incorporar, na medida do possível, as doenças profissionais constantes daquela Recomendação. Em 2010 essa Lista voltou a ser revista e uma nova versão foi aprovada. Essa Lista da OIT está organizada por agentes etiológicos (57 quadros, dos quais 41 causados por factores de risco de natureza química, 7 por agentes físicos e 9 por agentes microbiológicos ou parasitas) e por órgãos-alvo (mais 26 quadros, 12 de doenças respiratórias, 4 de doenças cutâneas, 8 de doenças músculo-esqueléticas e 2 de doenças mentais e do comportamento). Existem ainda, mais dois capítulos adicionais, um sobre cancro profissional (com 21 quadros) e um último denominado “outros” (com dois quadros).


Independentemente de uma reflexão que merece ser feita sobre as opções de sistematização das diversas Listas de Doenças Profissionais e ainda pelas opções feitas em cada um dos quadros, talvez o aspecto mais destacado da referida Recomendação seja a inclusão, pela primeira vez, de um capítulo de “doenças mentais e do comportamento” que não consta da actual Lista de Doenças Profissionais Portuguesa e que, essencialmente, são tipificadas como “doenças relacionadas com o trabalho” (na língua inglesa, work-related diseases) e não como doenças profissionais e, menos ainda, como doenças profissionais “legais”.

 

Em Portugal, há praticamente trinta anos que, com maior ou menor componente técnica ou científica, este tema da revisão da Lista das Doenças Profissionais tem vindo a ser revisitado. Tal é, de resto, consubstanciado na criação de diferentes Comissões (incluindo as técnicas) de Revisão da Lista das Doenças Profissionais.

 

Dada a livre circulação de trabalhadores, a existência de uma Lista Europeia de Doenças Profissionais (Directiva em vez de Recomendação) poderia ou não contribuir para melhores e mais adequadas políticas de Saúde e Segurança na União Europeia?

 

É desejável que, no mínimo, se coloque essa possibilidade e se discuta se tal iniciativa não poderia contribuir para a promoção da Saúde e Segurança dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho no espaço europeu, mais plausível depois do Brexit. Qualquer que seja a decisão que, eventualmente, venha a ser tomada nesse contexto haveria, por certo, maior equidade nos deveres e direitos dos trabalhadores e dos empregadores no âmbito da sua livre circulação no espaço Europeu e um presumível menor desequilíbrio entre as dimensões económica e social da nossa União. De que estamos então à espera para reflectir sobre aquela possibilidade?


Nota: Baseado no artigo: Sousa-Uva A. Lista das Doenças Profissionais: será desejável actualizar? Segurança. 2021; 256:  21-25. Publicado inicialmente na plataforma Healthnews.