Antonio
Sousa-Uva
As práticas da saúde (e segurança) do trabalho,
historicamente, podem ser sistematizadas em quatro grandes fases:
- a Proto-Medicina
do Trabalho, desde a Antiguidade até à segunda grande guerra;
- a Medicina
do Trabalho Clássica, desde a segunda grande guerra até à década de 1980;
- a
Saúde Ocupacional, desde a década de 1980 até ao final do século passado;
- a Saúde
(e Segurança) dos trabalhadores, desde o início deste século, plasmada no
nosso edifício jurídico específico como “Segurança, Higiene e Saúde dos
Trabalhadores nos Locais de Trabalho”;
E, espera-se,
- a Nova Saúde Ocupacional.
A primeira fase (a Proto-Medicina do Trabalho) foi,
essencialmente, caracterizada pelas acções centradas nos efeitos negativos que
o trabalho pode ter na saúde da população trabalhadora e perspetivadas, basicamente,
através de um modelo biomédico de análise e de intervenção. O centro da sua
atenção foram os acidentes de trabalho e as doenças profissionais (dose-dependentes)
e as metodologias de intervenção incidiram, no essencial, nas dimensões
curativas e preventivas daquelas patologias.
Até à Idade Média a “maquinaria” era muito escassa, a que
se seguiu um grande incremento do transporte animal e a utilização das forças
motrizes da água e do vento. Começa gradualmente a aparecer, nas cidades, o
trabalho artesanal com tendência a concentrar-se, geograficamente, por
profissão. É a época da manufatura, que antecede a era da “máquina”,
muito alicerçada em relações mestre/aprendiz, onde por vezes se pagava para
aprender um "ofício". O verdadeiro trabalho assalariado só emerge com
a 1ª revolução industrial.
A esse primeiro período (até à primeira revolução
industrial) segue-se, a partir de meados do século XVIII, um segundo período de
grandes inovações tecnológicas a que se segue o século do ferro e do aço
(século XIX). É nessa altura que emerge a primeira legislação ligada aos
aspetos da saúde nas suas relações com o trabalho, no Reino Unido, a Lei da
Moral e dos Aprendizes de 1802. Interdita-se então o trabalho a menores de nove
anos de idade, limita-se o seu trabalho a 8 horas de trabalho diário (6 dias
por semana) e, ainda, o trabalho noturno.
É ainda no final do século XIX que se cria, no Reino
Unido, a obrigatoriedade de notificação de doenças profissionais, só sendo
incluída a notificação da intoxicação pelo mercúrio em 1899. Desde a Idade
Média que eram descritas doenças profissionais fundamentalmente relacionadas
com a exposição a metais (saturnismo em trabalhadores de catedrais; hidrargirismo da doença dos
ourives; …) que, em 1700, viriam a integrar um tratado de medicina sobre as
doenças dos trabalhadores da autoria de Bernardino Ramazzini, médico
italiano.
A segunda fase (a Medicina do Trabalho Clássica), que se seguiu,
foi influenciada de forma decisiva pelas vincadas alterações sociais, e do
sistema produtivo, determinadas pelas modificações ocorridas como consequência
de carência de mão-de-obra, designadamente no período da 2ª grande guerra
mundial e no período que se lhe seguiu. Trata-se de um período de grande
desenvolvimento industrial que ocorreu inicialmente na Europa, mas que se
expandiu por todo o mundo e que se caracterizou por um grande impulso da
indústria metalúrgica seguido da “era do plástico” e do
grande desenvolvimento da indústria química.
Neste período desenvolveu-se a Medicina do Trabalho Clássica, visando
adaptar o trabalho ao homem e cada homem à sua profissão, em que se objectivava:
(i) a prevenção médica dos riscos profissionais; (ii) o bem-estar
físico, mental e social dos trabalhadores e (iii) o trabalho realizado
em ambientes adaptados às capacidades físicas e psíquicas dos trabalhadores.
Foi um período com uma intensa produção de normas e outras disposições
técnico-jurídicas que, no período seguinte, a “Saúde Ocupacional”, será ainda mais produtivo, com o
desenvolvimento, cada vez mais intenso, dos aspetos da prevenção dos acidentes
de trabalho e, em menor escala, da prevenção das doenças profissionais.
Aprofunda-se a terciarização, com significativas e muito vincadas,
mudanças tecnológicas e organizacionais e, mais para o final do milénio,
assiste-se ao reforço da globalização da economia mundial (e uma "exportação do sector secundário"), com a colocação de
novos desafios às relações entre o trabalho e a saúde. Essa globalização fomentou,
por exemplo, a deslocalização de empresas e a “exportação” de algumas
atividades (de trabalho) que propiciaram maiores vantagens económicas apesar
de, em muitos casos, não se assistir à equivalente globalização das condições
de saúde, higiene e segurança do trabalho e, consequentemente, diferentes
condições de trabalho e diferentes custos de produção. Nesses países assiste-se à "secundarização" da economia com, por exemplo, uma redução do trabalho agrícola.
"Explode" o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e novas formas de organização do trabalho de que são bons exemplos a "uberização", o teletrabalho, e mais recentemente, o uso da "inteligência artificial" que, tudo leva a crer, terá implicações no mundo do trabalho. Tais formas de trabalhar desafiam os anteriores modelos de prevenção, modificam as exigências do trabalho e exigem novos modelos de "compreensão" desse trabalho e, igualmente, novas estratégias de intervenção.
O modelo médico das relações trabalho/doença, muito baseado no fator
(profissional) de risco (ou “perigo”) e na doença/acidente correlacionada(o) é substituído,
gradualmente, pelo modelo multifatorial, sistémico, dessas relações. Um bom
exemplo disso é a crescente valorização dos fatores relacionados com a
atividade e dos fatores psicossociais, separados ou mesclados, que trazem maior complexidade às matrizes
etiológicas e, por isso, mais importantes desafios às estratégias de prevenção desses
mesmos riscos. Na Europa, por exemplo, mais de 25% dos trabalhadores referem
stress relacionado com o trabalho em todo o tempo de trabalho ou na maioria desse tempo, um grande número refere algia musculoesquelética e acentua-se muito a terciarização da economia e novas formas de trabalhar que desafiam, designadamente, o "on/off" do "trabalho/não trabalho" cujas repercussões na saúde são ainda mal conhecidas.
A sociedade e o mundo do trabalho ocidentais valorizam, de facto e
cada vez mais, o ambiente psicossocial e a sua importância nas relações trabalho/saúde(doença) adquire protagonismo em relação aos
fatores de risco de natureza química e física, dominantes, por exemplo, no período da
Medicina do Trabalho Clássica.
O (desejado) atual período, a “Saúde (e Segurança)
dos trabalhadores”, é também centrado no trabalhador e não só no ambiente
de trabalho. A perspetiva é mais baseada no indivíduo “uno”, saudável e seguro,
e não apenas nos locais de trabalho saudáveis e seguros, ainda demasiadamente evocados apesar de, aparentemente, cada vez mais "doentes". É nesse período que nasce, também, o conceito de “trabalho decente”, também ligado aos aspetos da saúde e segurança:
“… Decent work must be Safe Work”.
Nas relações entre o trabalho e a saúde(doença) mantêm-se todavia,
sistematicamente, muito esquecidos os aspetos “positivos” que o trabalho, em
termos de satisfação, bem-estar e realização pessoal, pode ter e a "resposta" à prevenção dos riscos psicossociais e relacionados com a actividade mantém-se, no essencial, profusamente insatisfatória. A este período poderíamos denominar "a Nova Saúde Ocupacional" De facto, o
trabalho pode ser mais saudável (e seguro) e até mesmo um factor promotor de saúde (espera-se que seja o referido vindouro período), devendo contribuir para tal o
compromisso das empresas e dos trabalhadores e designadamente:
- o reconhecimento
que as empresas têm impacto na saúde (e segurança) das pessoas, o que deveria determinar o
desenvolvimento de uma cultura desses valores de que resultaria melhor resposta preventiva;
- os riscos profissionais estão muito para além dos riscos de acidente de trabalho e "travestem-se" de doenças naturais, contrariamente às doenças profissionais exclusivas, com matrizes etiológicas complexas em que outros factores também intervêm;
- a necessidade de compromisso
organizacional, de informação e de boa comunicação;
- o maior envolvimento
dos trabalhadores no processo de decisão em saúde (e segurança);
- e a necessidade de promover políticas
e práticas de escolhas saudáveis e seguras (que também sejam as mais fáceis).
De que estamos então à espera para promover esse (novo)compromisso? É que, de facto, não há trabalho saudável (e seguro) sem trabalhadores saudáveis (e também seguros) e isso é mesmo, de facto, o que interessa. Não será assim? vamos continuar a "expurgar" o trabalhador dos postos de trabalho, atribuindo-lhe a classificação de "trabalhador médio" e a perseguir somente locais de trabalho saudáveis?
É que "trabalho saudável", note-se, é bem diferente de "local de trabalho saudável", desde logo porque o trabalho é humano e os trabalhadores são sua parte integrante. Local de trabalho é, portanto, o local onde o trabalho é realizado e apenas uma parte das exigências do trabalho que se colocam a um trabalhador. E, definitivamente, não existe qualquer "trabalhador médio".
Nota: Adaptado de um texto publicado, inicialmente, na revista Segurança.