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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Ainda os acidentes de trabalho mortais: trabalhador soterrado em mina e queda de outros dois de 30 metros de altura

 


Antonio Sousa-Uva


Neste dia 12 de fevereiro de 2024 mais um acidente de trabalho mortal, agora por soterramento e numa mina e outros dois por queda. Para quem associa os acidentes de trabalho mortais só à Construção Civil estes trágicos acontecimentos vêm revelar que tal nem sempre acontece e que essa abordagem é muito redutora.

 

De quando em vez outras notícias, com desfecho mais ou menos (in)feliz, dão-nos conta de outras situações ocorridas também em minas e na indústria. Para muitos, esses acontecimentos são inevitáveis e considerados um acontecimento fortuito tão ligado ao “azar” que, por exemplo, em Itália o acidente denomina-se infortúnio (ou falta de sorte) ou mesmo uma "disgrazia".

 

Será desejável referir que todos os acidentes, pelo menos no plano teórico, são evitáveis e preveníveis. Algumas questões, nesse domínio, podem então ser colocadas:

 

Fazemos o que deve ser feito em matéria de prevenção dos acidentes de trabalho?

 

As normas e regras da Saúde e Segurança do Trabalho são respeitadas nesse domínio?

 

Será suficiente, a diversos níveis, o controlo da aplicação das normas e regras?

 

Existirá uma robusta cultura de saúde e segurança do trabalho nas nossas empresas e outras organizações?

 

A comunicação de riscos e a formação dos trabalhadores nesse domínio serão realizadas de forma sistemática e com grande empenho dos empregadores?

 

A prevenção de acidentes de trabalho não é muito olhada como um custo adicional?

 

Poderiam colocar-se muitas outras questões em relação à ocorrência destes dramáticos acontecimentos, mas o propósito desta reflexão é somente a tentativa de promover mais “massa crítica” nesse domínio. Tal faz-se mais pensando nesses assuntos do que apenas descrevendo-os …

 

No nosso caso, de dedicação de quase 50 anos a estes assuntos, a conclusão é que não fazemos tudo o que poderíamos fazer para prevenir estes acontecimentos e cada vez que ocorrem temos a sensação que podíamos ter feito mais e melhor para os evitar. Se pensarmos dessa forma, mesmo por excesso, a probabilidade de acontecerem, seguramente, que será cada vez menor, rumo à sua desejada total evicção. Reduzimos, portanto, o risco rumo à sua eliminação. Esse sim, é um bom objectivo mas requer mais empenho de todos!

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Para quando o necessário "golpe de rins" na Saúde Ocupacional?


Antonio Sousa-Uva

 

As práticas da saúde (e segurança) do trabalho, historicamente, podem ser sistematizadas em quatro grandes fases:


  • a Proto-Medicina do Trabalho, desde a Antiguidade até à segunda grande guerra;
  • a Medicina do Trabalho Clássica, desde a segunda grande guerra até à década de 1980;
  • a Saúde Ocupacional, desde a década de 1980 até ao final do século passado;
  • a Saúde (e Segurança) dos trabalhadores, desde o início deste século, plasmada no nosso edifício jurídico específico como “Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho”;
E, espera-se,

  •  a Nova Saúde Ocupacional.

 

A primeira fase (a Proto-Medicina do Trabalho) foi, essencialmente, caracterizada pelas acções centradas nos efeitos negativos que o trabalho pode ter na saúde da população trabalhadora e perspetivadas, basicamente, através de um modelo biomédico de análise e de intervenção. O centro da sua atenção foram os acidentes de trabalho e as doenças profissionais (dose-dependentes) e as metodologias de intervenção incidiram, no essencial, nas dimensões curativas e preventivas daquelas patologias.

 

Até à Idade Média a “maquinaria” era muito escassa, a que se seguiu um grande incremento do transporte animal e a utilização das forças motrizes da água e do vento. Começa gradualmente a aparecer, nas cidades, o trabalho artesanal com tendência a concentrar-se, geograficamente, por profissão. É a época da manufatura, que antecede a era da “máquina”, muito alicerçada em relações mestre/aprendiz, onde por vezes se pagava para aprender um "ofício". O verdadeiro trabalho assalariado só emerge com a 1ª revolução industrial.

 

A esse primeiro período (até à primeira revolução industrial) segue-se, a partir de meados do século XVIII, um segundo período de grandes inovações tecnológicas a que se segue o século do ferro e do aço (século XIX). É nessa altura que emerge a primeira legislação ligada aos aspetos da saúde nas suas relações com o trabalho, no Reino Unido, a Lei da Moral e dos Aprendizes de 1802. Interdita-se então o trabalho a menores de nove anos de idade, limita-se o seu trabalho a 8 horas de trabalho diário (6 dias por semana) e, ainda, o trabalho noturno.

 

É ainda no final do século XIX que se cria, no Reino Unido, a obrigatoriedade de notificação de doenças profissionais, só sendo incluída a notificação da intoxicação pelo mercúrio em 1899. Desde a Idade Média que eram descritas doenças profissionais fundamentalmente relacionadas com a exposição a metais (saturnismo em trabalhadores de catedrais; hidrargirismo da doença dos ourives; …) que, em 1700, viriam a integrar um tratado de medicina sobre as doenças dos trabalhadores da autoria de Bernardino Ramazzini, médico italiano.

 

A segunda fase (a Medicina do Trabalho Clássica), que se seguiu, foi influenciada de forma decisiva pelas vincadas alterações sociais, e do sistema produtivo, determinadas pelas modificações ocorridas como consequência de carência de mão-de-obra, designadamente no período da 2ª grande guerra mundial e no período que se lhe seguiu. Trata-se de um período de grande desenvolvimento industrial que ocorreu inicialmente na Europa, mas que se expandiu por todo o mundo e que se caracterizou por um grande impulso da indústria metalúrgica seguido da “era do plástico” e do grande desenvolvimento da indústria química.

 

Neste período desenvolveu-se a Medicina do Trabalho Clássica, visando adaptar o trabalho ao homem e cada homem à sua profissão, em que se objectivava: (i) a prevenção médica dos riscos profissionais; (ii) o bem-estar físico, mental e social dos trabalhadores e (iii) o trabalho realizado em ambientes adaptados às capacidades físicas e psíquicas dos trabalhadores.

 

Foi um período com uma intensa produção de normas e outras disposições técnico-jurídicas que, no período seguinte, a “Saúde Ocupacional”, será ainda mais produtivo, com o desenvolvimento, cada vez mais intenso, dos aspetos da prevenção dos acidentes de trabalho e, em menor escala, da prevenção das doenças profissionais.

 

Aprofunda-se a terciarização, com significativas e muito vincadas, mudanças tecnológicas e organizacionais e, mais para o final do milénio, assiste-se ao reforço da globalização da economia mundial (e uma "exportação do sector secundário"), com a colocação de novos desafios às relações entre o trabalho e a saúde. Essa globalização fomentou, por exemplo, a deslocalização de empresas e a “exportação” de algumas atividades (de trabalho) que propiciaram maiores vantagens económicas apesar de, em muitos casos, não se assistir à equivalente globalização das condições de saúde, higiene e segurança do trabalho e, consequentemente, diferentes condições de trabalho e diferentes custos de produção. Nesses países assiste-se à "secundarização" da economia com, por exemplo, uma redução do trabalho agrícola.


"Explode" o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e novas formas de organização do trabalho de que são bons exemplos a "uberização", o teletrabalho, e mais recentemente, o uso da "inteligência artificial" que, tudo leva  a crer, terá implicações no mundo do trabalho. Tais formas de trabalhar desafiam os anteriores modelos de prevenção, modificam as exigências do trabalho e exigem novos modelos de "compreensão" desse trabalho e, igualmente, novas estratégias de intervenção. 

 

O modelo médico das relações trabalho/doença, muito baseado no fator (profissional) de risco (ou “perigo”) e na doença/acidente correlacionada(o) é substituído, gradualmente, pelo modelo multifatorial, sistémico, dessas relações. Um bom exemplo disso é a crescente valorização dos fatores relacionados com a atividade e dos fatores psicossociais, separados ou mesclados, que trazem maior complexidade às matrizes etiológicas e, por isso, mais importantes desafios às estratégias de prevenção desses mesmos riscos. Na Europa, por exemplo, mais de 25% dos trabalhadores referem stress relacionado com o trabalho em todo o tempo de trabalho ou na maioria desse tempo, um grande número refere algia musculoesquelética e acentua-se muito a terciarização da economia e novas formas de trabalhar que desafiam, designadamente, o "on/off" do "trabalho/não trabalho" cujas repercussões na saúde são ainda mal conhecidas.

 

A sociedade e o mundo do trabalho ocidentais valorizam, de facto e cada vez mais, o ambiente psicossocial e a sua importância nas relações trabalho/saúde(doença) adquire protagonismo em relação aos fatores de risco de natureza química e física, dominantes, por exemplo, no período da Medicina do Trabalho Clássica.

 

O (desejado) atual período, a “Saúde (e Segurança) dos trabalhadores”, é também centrado no trabalhador e não só no ambiente de trabalho. A perspetiva é mais baseada no indivíduo “uno”, saudável e seguro, e não apenas nos locais de trabalho saudáveis e seguros, ainda demasiadamente evocados apesar de, aparentemente, cada vez mais "doentes". É nesse período que nasce, também, o conceito de “trabalho decente”, também ligado aos aspetos da saúde e segurança: “… Decent work must be Safe Work”.

 

Nas relações entre o trabalho e a saúde(doença) mantêm-se todavia, sistematicamente, muito esquecidos os aspetos “positivos” que o trabalho, em termos de satisfação, bem-estar e realização pessoal, pode ter e a "resposta" à prevenção dos riscos psicossociais e relacionados com a actividade mantém-se, no essencial, profusamente insatisfatória. A este período poderíamos denominar "a Nova Saúde Ocupacional"  De facto, o trabalho pode ser mais saudável (e seguro) e até mesmo um factor promotor de saúde (espera-se que seja o referido vindouro período), devendo contribuir para tal o compromisso das empresas e dos trabalhadores e designadamente:

 

  • o reconhecimento que as empresas têm impacto na saúde (e segurança) das pessoas, o que deveria determinar o desenvolvimento de uma cultura desses valores de que resultaria melhor resposta preventiva;
  • os riscos profissionais estão muito para além dos riscos de acidente de trabalho e "travestem-se" de doenças naturais, contrariamente às doenças profissionais exclusivas, com matrizes etiológicas complexas em que outros factores também intervêm;
  • a necessidade de compromisso organizacional, de informação e de boa comunicação;
  • o maior envolvimento dos trabalhadores no processo de decisão em saúde (e segurança);
  • e a necessidade de promover políticas e práticas de escolhas saudáveis e seguras (que também sejam as mais fáceis).


De que estamos então à espera para promover esse (novo)compromisso? É que, de facto, não há  trabalho saudável (e seguro)  sem trabalhadores saudáveis (e também seguros) e isso é mesmo, de facto, o que interessa. Não será assim? vamos  continuar a "expurgar" o trabalhador dos postos de  trabalho,  atribuindo-lhe  a  classificação  de "trabalhador médio" e  a perseguir somente locais de trabalho saudáveis?  


É   que  "trabalho   saudável",  note-se, é   bem    diferente  de  "local  de  trabalho   saudável", desde   logo   porque  o  trabalho  é   humano  e  os  trabalhadores   são sua parte integrante. Local de trabalho é, portanto, o local  onde o  trabalho é realizado e apenas  uma parte das exigências do trabalho    que   se  colocam  a  um  trabalhador. E,  definitivamente,   não  existe qualquer "trabalhador médio".



Nota: Adaptado de um texto publicado, inicialmente, na revista Segurança.