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sábado, 31 de julho de 2021

Saúde Respiratória e Trabalho: exposição profissional e hábitos individuais

 


Antonio Sousa-Uva

 

Ao longo dos tempos, o modo como a Medicina tem abordado os problemas de saúde dos doentes tem sofrido alterações marcadas, de acordo com a evolução dos paradigmas da saúde/doença e as várias alterações sociais, políticas e institucionais, inclusive no plano legislativo. Assim, se em meados do século XIX a Medicina obedecia a um modelo biomédico-sanitário e, após a 2.ª Guerra Mundial, a um modelo médico-social ou biopsicossocial, desde os anos de 1970 até à atualidade os profissionais têm-se regido por um modelo mais comunitário, que se pretende também mais abrangente, transversal e complexo, encarando a saúde muito para além dos aspectos relativos à componente física de cada indivíduo doente.

 

A abordagem da saúde para além da «ausência de doença», envolvendo a componente médica integrada com outros aspectos, designadamente sociais e ocupacionais, permite ganhos para o sistema de saúde, adaptando-se ao contexto atual da evolução daqueles paradigmas de saúde. No entanto, a implementação e a operacionalização destes conceitos apresenta dificuldades, devido à insuficiência de metodologias e instrumentos face a outros modelos de natureza mais quantitativa e objetiva.

 

No contexto da saúde respiratória, a realidade portuguesa apresenta um défice importante na sua promoção, designadamente no que se refere à intervenção nas fases iniciais da doença, localizando-se o foco de atenção mais na resolução das complicações e em questões relacionadas com prestação de cuidados como, por exemplo, a acessibilidade às consultas e aos tratamentos.

 

A sustentabilidade das medidas implementadas no contexto dos sistemas de saúde na área da prevenção, designadamente no âmbito da saúde respiratória, deveria, porém, ser muito mais privilegiada. Assinale-se o importante esforço na prevenção dos hábitos tabágicos da última década e o não tão grande esforço na prevenção das doenças respiratórias profissionais.

 

Por exemplo, o apoio ao trabalhador na cessação tabágica no contexto da Saúde Ocupacional e da Medicina do Trabalho ainda não foi estabelecido, pelas organizações, como um aspeto prioritário no contexto da abordagem da saúde e segurança dos seus trabalhadores. Note-se que em relação aos hábitos de consumo de bebidas alcoólicas e de outras substâncias aditivas a atenção prestada é um pouco maior, ainda que também insuficiente.

 

Em Portugal, os indicadores de mortalidade por doenças cardiovasculares ou o cancro “escondem” as doenças respiratórias, assim como no contexto do trabalho na última década, as doenças respiratórias foram “esmagadas” pelas lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho. No entanto, as doenças respiratórias têm uma importância incontornável, seguramente superior à que lhe é conferida no planeamento das ações que objetivam a sua prevenção.

 

Quer o sector público quer o sector privado, em todos os campos de atividade económica, têm um amplo e aberto espaço de actuação no contexto da saúde respiratória, designadamente pela implementação de políticas de prevenção e de promoção da saúde, valorizando a prestação de cuidados enquanto serviço ou produto, sujeito às normas de avaliação de custo/utilidade, de acordo com os princípios económicos aplicados ao sector da saúde.

 

Os locais de trabalho são locais privilegiados para tal tipo de políticas, quer em aspetos dos hábitos de vida dos trabalhadores, quer na prevenção do risco de doença respiratória “ligada” ao trabalho. É que um doente saudável do seu aparelho respiratório torna por certo mais saudável a organização onde trabalha, uma vez que é um dos seus ativos mais valiosos.


Nota: Modificado de uma versão publicada, inicialmente, no blog Safemed.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Saúde e Segurança do Trabalho: necessidade imperiosa de compromissos mútuos



Antonio Sousa-Uva

A melhoria da prestação de cuidados de Saúde e Segurança do Trabalho não passa apenas pelas modalidades de organização dos serviços que tantas energias consumiram aos diversos técnicos envolvidos, aos parceiros sociais e ao poder político. De facto, esses serviços, qualquer que seja a modalidade de organização, só funcionam com técnicos competentes, a quem se ofereça condições de trabalho “reguladas” e cooperando entre si.


A Medicina do Trabalho, e outras disciplinas como a Enfermagem do Trabalho ou de Saúde Ocupacional, centram-se essencialmente nos indivíduos, enquanto a área da Higiene e Segurança do Trabalho se concentra nos fatores de risco (ou “perigos”) ambientais de doença profissional ou de acidente de trabalho.


Existe consequentemente uma certa “inevitabilidade” da abordagem integrada desses fenómenos, se se pretender de facto ser eficaz em matéria de prevenção dos riscos profissionais. De que serviria, por exemplo, ter trabalhadores saudáveis em ambientes de trabalho com factores de risco susceptíveis de, mais cedo ou mais tarde, causar doença profissional como por exemplo a exposição a amianto ou a sílica livre? Seria de resto irónico vigiar a saúde dos indivíduos para que tivessem o maior “potencial” de saúde, sabendo que a exposição profissional levaria inexoravelmente à doença ou ao acidente.


Os médicos do trabalho têm, em minha opinião, como maior desafio o trabalho conjunto com outros profissionais da Saúde e Segurança do Trabalho que deve constituir a grande evolução das condições de exercício profissional.


De outra forma a tendência será para a “musculação” da prestação de serviços formais, “ritualizados,” desprezando cada vez mais a componente substantiva da Saúde e Segurança do Trabalho: a protecção e a promoção da saúde das pessoas que trabalham e, de uma forma particular, dos seus aspectos relacionados com as inter-relações entre o trabalho e a saúde. 


A Organização Internacional do Trabalho introduziu, há alguns anos, o conceito de trabalho “decente” que, no essencial, é entendido como o trabalho feito com dignidade, sem qualquer discriminação, em condições de saúde e segurança, remunerado adequadamente e em ambiente saudável e seguro. É um trabalho exercido com liberdade, em diálogo social, com respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e, muito importante, com equidade.


Terá um trabalhador imigrante ilegal um trabalho “decente”?

Terá um qualquer trabalhador mal informado sobre os direitos e deveres de trabalhadores e de entidades patronais um trabalho “decente”?

Terá um qualquer trabalhador sem conhecimento dos riscos profissionais um trabalho saudável e seguro?

E se o trabalho não reúne essas condições, como pode ser seguro e saudável?


Para que o trabalho seja “decente” é, portanto, desde logo indispensável um ambiente de trabalho saudável, seguro e satisfatoriamente confortável e um trabalhador saudável, activo e produtivo, sem doenças naturais ou ocupacionais e apto e motivado para o exercício da sua actividade profissional, com satisfação e desenvolvendo-se de forma pessoal e profissional. Trata-se de uma formulação que ilustra bem a importância da valorização de aspectos que estão para além da abordagem dos factores de risco tradicionais de natureza química ou física. Claro que existem outros aspectos que devem contribuir para tal adjetivação.


O conceito de “trabalho decente” está mais relacionado com o mundo do trabalho do que com o mundo da saúde. O mundo do trabalho é um mundo muito complexo, com intensa conflituosidade de interesses e muito desigual nas capacidades de intervenção dos diversos “actores” sociais, nomeadamente entidades patronais e sindicais. A Saúde e Segurança Ocupacionais são elementos indispensáveis para a “operacionalização” daquele tipo de trabalho e até, para uma sã competitividade na dimensão “preço” e “custos” de bens e serviços. Indirectamente, a Saúde e Segurança do Trabalho é um elemento indispensável a uma economia de mercado, onde a competitividade e a concorrência devem ser “leais” e não alicerçadas na razão directa entre a redução de preços baseada na redução de custos, por exemplo, relacionados com a protecção da saúde e da segurança.


Como é então possível conceber locais de trabalho seguros e saudáveis sem investir na capacitação (ou empoderamento) dos trabalhadores em saúde e segurança?


Estes sim são importantes condicionantes da tal “cultura de saúde e segurança” e não a abordagem redutora que circunscreve tal tipo de cultura à aderência aos equipamentos de proteção individual ou ao cumprimento das regras de segurança. Tal não impede que tais matérias não sejam importantes, se valorizadas numa abordagem sistémica que “empodere” (ou capacite) de facto um trabalhador como principal guardião da sua saúde e segurança.


O maior objetivo de qualquer sistema de saúde e segurança do trabalho, para além da prevenção ambiental dos riscos profissionais é a promoção da saúde (no seu sentido mais lato), ou seja, habilitar os trabalhadores a aumentar o controlo sobre a sua saúde e ainda a promover essa mesma saúde em ambientes de trabalho seguros e salubres.


Como será possível atingir esses objectivos sem comprometer os empregadores e empregados nesse processo? E todos os técnicos que nessa área intervêm?


Exigem-se, urgentemente, compromissos mútuos.


Nota: Publicado inicialmente no blog Safemed, agora reformulado na actual publicação.

A exposição a agentes biológicos e a alergia profissional

 


Antonio Sousa-Uva 


As manifestações alérgicas podem ter diversas localizações, destacando-se, pela sua importância, os seguintes órgãos(sistemas)–alvo: (1) árvore respiratória (asma e alveolites alérgicas extrínsecas) e (2) pele (eczema de contacto, rashes, urticária e angioedema ou edema de Quincke). A alergia profissional pode ainda traduzir-se por manifestações oculares (conjuntivites e uveítes, por exemplo) e, mais raramente, por reacções sistémicas graves (anafilaxia). As formas clínicas mais frequentes são, no entanto, a asma, a rinite alérgica e o eczema de contacto.

Os agentes etiológicos das alergopatias profissionais são muitíssimo numerosos sendo apontados mais de 300 agentes só para a asma profissional e incluem as substâncias orgânicas (de origem animal, vegetal ou fúngica) e as macromoléculas simples (proteínas e polissacáridos). Por exemplo, mais de um terço de indivíduos expostos a cobaios pode desenvolver queixas rinoconjuntivais e muitos desses pode desenvolver asma. Nesse contexto, assinalam-se alguns exemplos sobre alergia provocada por agentes biológicos, destacando-se:

  • a alergia a animais de laboratório;
  • a asma relacionada com a exposição a farinhas de cereais;
  • as alveolites alérgicas extrínsecas, como a suberose; e
  • a bissinose.

Muitas vezes valorizam-se apenas os aspetos relacionados com a exposição a substâncias químicas quando se aborda a alergia profissional, mas também os agentes biológicos devem ser considerados e valorizados numa perspetiva de literacia em saúde dos trabalhadores. É que, no essencial, previne-se melhor aquilo que se conhece e não há ninguém mais interessado na prevenção que os próprios trabalhadores.
 
Os fatores de risco de natureza profissional, isto é, os factores susceptíveis de causar efeitos adversos na saúde de quem trabalha, são frequentemente classificados, na perspectiva das condições de trabalho, em: (1) químicos; (2) físicos; (3) (micro)biológicos; (4) psicossociais e mais recentemente (5) relacionados com a actividade.

Os efeitos sensibilizantes em ambiente de trabalho estão intimamente relacionados com a exposição ocupacional a agentes químicos e biológicos que podem ser alergénios (completos ou incompletos), que colocam problemas de ordem prática em matéria de avaliação e gestão do risco e da implementação das decorrentes estratégias de prevenção. Por exemplo, a fixação de valores máximos admissíveis (VMA), apesar de serem conhecidas algumas centenas de agentes sensibilizantes, apenas algumas dezenas têm notação “sensibilizante” adicional ao VMA e a sua dependência da dose tem contornos que não seguem o modelo atual de prevenção.
 

Nota: publicado numa versão inicial no blog Safemed agora modificada. 
 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Segurança do Doente e Saúde e Segurança do prestador de cuidados: duas faces da mesma moeda


 

 

Antonio Sousa-Uva

As questões relacionadas com a qualidade em saúde têm vindo a adquirir uma importância crescente, inicialmente em matérias essencialmente relacionadas com a acreditação de unidades de saúde ou a satisfação de clientes. Mais recentemente, os aspectos relativos ao erro clínico, ao erro medicamentoso, à infecção associada aos cuidados de saúde, aos erros relacionados com transfusões sanguíneas e a outros eventos adversos, têm vindo a ocupar a atenção dos cidadãos, de profissionais de saúde e de gestores.

De facto os aspectos da Segurança do Doente associados à ocorrência de efeitos indesejados, principalmente os evitáveis (ou preveníveis), em doentes submetidos a prestação de cuidados tem, pela sua frequência e gravidade, desencadeado diversas iniciativas de avaliação e gestão do risco em unidades de saúde, principalmente em hospitais.

A abordagem em Segurança do Doente tem-se centrado muito numa perspectiva de acontecimento ocasional e acidental em que as variáveis individuais são frequentemente consideradas decisivas para a sua ocorrência, como muitas vezes é interpretado o modelo de notificação de eventos adversos. No entanto, diversos aspectos relativos aos ambientes hospitalares, principalmente associados à concepção dos espaços (estrutura, disposição de espaços e de equipamentos) e à organização das actividades (processo - actividade) devem ser também valorizados na complexa rede de interdependências e inter-relações dos sistemas também complexos, de que os hospitais (e outras unidades de saúde) são um bom exemplo. De facto, a notificação de eventos adversos permite procurar a  causalidade desses acontecimentos o que pode possibilitar a “compreensão” dos elementos que estão na sua origem e a consequente implementação de acções que visem diminuir ou eliminar  a  probabilidade da sua ocorrência.

Assim, por exemplo, aspectos das situações reais de trabalho como a saúde do trabalhador da saúde, a comunicação entre profissionais, o horário de trabalho, a carga de trabalho ou a dimensão das equipas de trabalho ou a fadiga poderão ter consequências (in)directas na prestação de cuidados de saúde. A Segurança do Doente depende pois da interacção de diversos factores relacionados, por um lado, com o doente e com a prestação de cuidados que podem envolver elementos de natureza individual (falhas activas) e organizacional (falhas latentes) e, por outro, com os referidos aspectos de natureza individual.

A perspectiva “dominante”, baseada na culpabilização individual, muito frequente em alguns modelos de gestão, é inadequada na óptica da gestão do risco e da Segurança do Doente. De facto é preciso conhecer para prevenir em vez de conhecer para culpabilizar.

Os erros são, frequentemente, “sintomas” de disfuncionamento dos sistemas de trabalho e só o seu conhecimento permite intervenções de anulação (ou redução) do seu risco de ocorrência e, nessa perspectiva, são verdadeiras “pérolas” para gerir mudança. E é essencialmente isso que se pretende, prevenir os eventos adversos evitáveis que, através de intervenções nesse “sistema”, permitam, tendencialmente, reduzir a zero a probabilidade da sua ocorrência. A Saúde e Segurança dos profissionais de saúde e dos doentes assim o exigem!

 

 Nota: Adaptado de um texto anteriormente publicado no blog Safemed.

 

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

O final da vida ativa: a pouca lógica da regra do “tudo ou nada”!

 


 Antonio Sousa-Uva

A idade da reforma tem vindo, anualmente, a aumentar por essa Europa fora, e também em Portugal, sancionando fortemente quem se desvia dessas determinações. Em vidas contributivas de 35 a 45 anos (ou mesmo mais) apela-se agora, para mudar as regras devido ao aumento da esperança de vida e à redução da taxa de natalidade, como se quem trabalha disso tivesse alguma responsabilidade. 

Claro que, felizmente, há um aumento da esperança de vida que não ocorreu de repente e em todos os países ao mesmo tempo. Dito de outra forma, a adaptação à realidade em mudança sempre existiu o que é novo agora é o resultado dessa mudança, previsível há muito, pelo menos, em quinquénios ou decénios.

Paga-se a “distracção” do sistema de compensação, diga-se de há muito  e em fim de vida activa, literalmente com “o corpo” (ou melhor, com a mudança, às vezes súbita, de um contrato feito quarenta anos ou mais anos antes …). De facto, “quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão” ou, dir-se-ia mesmo que “mesmo que não bata o mexilhão sofre sempre”. Recorde-se o que se passou entre nós, quase de hoje para amanhã, com o tempo de aplicação do efeito da reforma: dos 65 para os 66 anos e há bem pouco tempo.

O aumento da esperança de vida e o envelhecimento da população nas sociedades do mundo ocidental não ocorreu de um dia para o outro e os sistemas de Segurança Social estiveram, basicamente, “distraídos” até ameaçarem ruptura e a idade da reforma, por isso, está cada vez mais tardia e o valor da pensão mais baixo. Apesar disso as intervenções na melhoria das condições e da actividade de trabalho na perspectiva da saúde e segurança inerentes a tal prolongamento dessa vida activa estão “flat”, adoptando uma linguagem de surf.

Se o investimento em promoção da saúde no local de trabalho e a prevenção dos riscos profissionais não tivesse uma expressão quase similar ao voluntarismo em liquidar o IRS ou o IRC, a “capacidade de trabalho” ao longo da vida poder-se-ia manter próxima dos níveis do início da atividade profissional em idades jovens, se as empresas (e outras organizações) valorizassem a Saúde Ocupacional, a Medicina do Trabalho e outras disciplinas como a Ergonomia encarada na perspetiva da Saúde Ocupacional (ou Saúde e Segurança do Trabalho se se preferir).


Não é preciso ser muito imaginativo para compreender que ter trabalhadores saudáveis e ativos e produtivos, sem doenças naturais ou profissionais e aptos e motivados para o exercício das suas atividades é indispensável para uma maior produtividade. Isto apesar de se saber que, por exemplo e entre outras, a capacidade física, medida através da capacidade cardiorrespiratória e a força máxima voluntária, decai com a idade, para não falar da redução das capacidades auditiva e visual, de todos bem conhecida na sua associação à idade.

Apesar de, há já mais de vinte ou trinta anos, se conhecer essa tendência, as empresas (e outras organizações) têm tido dificuldade em integrar a realidade (e adaptarem-se) d(a)o envelhecimento da sua força de trabalho e, por isso, em conceber o trabalho para esses trabalhadores numa perspetiva de aliar a capacidade restante desses trabalhadores às exigências concretas que o trabalho determina e, dessa forma, obter a melhor performance no processo produtivo, independentemente do sector de actividade económica.

É decisivo lembrar que o juízo de trabalhar ou de se reformar depende de inúmeros fatores que, contrariamente à “mudança permanente das regras do jogo” (agora, felizmente, mais previsível com fórmulas adaptativas), influenciam, mas não determinam, a vontade de cada trabalhador, num contexto de grandes decisões a tomar ao longo da sua vida activa.

Seria bom que todos pensássemos se faz sentido o “tudo ou nada” na aptidão para o trabalho relacionada com o envelhecimento e as respectivas exigências do trabalho. 

Será que no limiar etário legal, em cada momento, se deixa de estar apto de um segundo para o outro? Fará algum sentido esse raciocínio?

Não seria melhor encarar a possibilidade de ter alguma criatividade em, num período pré-reforma de dimensão variável e naturalmente com cariz voluntária, se criarem condições para outros modelos de passagem à reforma (ou aposentação) que não se circunscrevessem ao “tudo ou nada”? 

Será sensato, igualmente, o “tudo ou nada” na aptidão para o trabalho? 

Não será sensato, num processo de reforma, um procedimento gradativo e “insinuante” que “acompanhe” o processo de envelhecimento dos trabalhadores?

Realmente, há muito (demasiado) tempo que me parece que um processo mais progressivo de final de vida activa empregada seria ganhador para todos: trabalhadores, empregadores e Segurança Social. Estaremos em presença de mais outra “distração” ou esta perspectiva é “míope” ou mesmo totalmente errada?

Pelo menos deveriam ser disponibilizadas, a quem voluntariamente o pretenda, outras formas alternativas de passar de activo a inactivo, por exemplo "menos activo". Quanto mais não seja porque depois, e cada vez mais, se gasta muito dinheiro em promover actividade aos inactivos!

E que actividade? é que, por exemplo, o raciocínio ou a memória (e outras faculdades cognitivas) não melhoram a movimentar, com maior ou menor frequência e com maior ou menor vigor e repetição, os membros e o tronco ...  ou a fomentar a mobilidade em meio urbano. Porque não maior diversidade e escolhas em momentos tão decisivos das nossas vidas? É que tudo leva a crer que é "win, win" (ou, em português, favorável para ambas as partes) ...


Nota: Texto modificado de um outro publicado anteriormente em Healthnews.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Saúde e Segurança do Trabalho: motor ou obstáculo ao desenvolvimento?



Antonio Sousa-Uva


O Trabalho tem sido um fator determinante do desenvolvimento económico e social e a salubridade dos ambientes de trabalho há séculos que constitui um fator relevante em matéria de saúde e bem-estar das populações. A Saúde e a Segurança dos Trabalhadores (SST) nos locais de trabalho, incluindo a Promoção e a Proteção da Saúde podem, por isso, constituir um importante fator de desenvolvimento económico e social.


Qualquer que seja o modelo conceptual, a abordagem prática dos aspetos relativos às (inter)relações trabalho/saúde(doença) reside sempre no conhecimento dos fatores profissionais em jogo e das respetivas repercussões sobre a saúde dos trabalhadores. Tal abordagem exige ainda o conhecimento aprofundado das variáveis individuais dos trabalhadores que interagem com os diversos elementos das situações de trabalho, e que delas fazem parte integrante, quer nos aspetos de adversidade (os mais frequentes), quer nas dimensões do conforto ou do bem-estar (quase sempre esquecidas).


Independentemente da perspetiva, o binómio trabalho/saúde(doença) deve merecer mais atenção por parte de todos nós, através de um maior investimento da sociedade na proteção da saúde de quem trabalha e na promoção da sua saúde. Investimento e não custo, como muitas vezes é encarada, a SST é uma componente essencial do desenvolvimento e do crescimento económico, devendo ser encarada como motor (e não como obstáculo) ao desenvolvimento e ao crescimento sustentado da sociedade.


As estratégias de intervenção em SST mais prevalentes assentam, quase sempre, nas dimensões ambiental (Higiene e Segurança do Trabalho) e individual (Medicina do Trabalho e Enfermagem do Trabalho, por exemplo) e, mesmo nessas, essencialmente na avaliação e gestão do risco relacionadas com fatores de risco químicos, físicos e, muito menos, microbiológicos, psicossociais ou relacionados com a atividade.


Interessa por isso re-inventar novas abordagens das relações entre a saúde (na sua acepção mais ampla) e o mundo do trabalho, valorizando mais a saúde dos trabalhadores do que a Saúde Ocupacional em sentido estrito (e hoje corrente), de modo a dar maior importância ao trabalho como agente promotor de saúde e caminhando, dessa forma, para abordagens que se situem para além dos fatores (profissionais) de risco. Para além, implica ainda que a promoção da saúde não se confine à escolha individual de hábitos e estilos de vida e inclua sempre um local de trabalho livre de fatores de risco de natureza profissional ou, pelo menos, locais de trabalho com uma boa gestão dos riscos profissionais.


Tal nada tem a ver com a promoção da SST que é outro assunto, igualmente importante, que alguém se encarregou de ir “adulterando”, confundindo-a coma Promoção da Saúde. Dito de outra forma, a Promoção da Saúde no Local de Trabalho tem tanto a ver com a Medicina do Trabalho como a Ergonomia, a Psicologia do Trabalho, a Sociologia do Trabalho, a Higiene e Segurança do Trabalho, a Enfermagem do Trabalho ou qualquer outra área científica que aborde, na sua área concreta, aspetos daquelas inter-relações entre o trabalho e a saúde ou a doença. A Promoção da SST é um assunto de todas essas áreas científicas e, mais ainda, dos próprios trabalhadores e empregadores.


Nota: Modificado de um outro texto antes publicado no blog Safemed

Tuberculose profissional: uma doença profissional muito esquecida




 

Antonio Sousa-Uva

Há alguns anos uma notícia da Sul Informaçãode 11 de Agosto de 2015também abordada na RTP, referia:

 

“... duas enfermeiras do serviço de Urgência do Hospital de Portimão foram recentemente diagnosticadas com Tuberculose, denunciou o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP)... A situação foi detetada em Maio, altura em que uma das profissionais de saúde começou a manifestar alguns sintomas da doença ...”


 

Em países com uma taxa de incidência de tuberculose inferior a 50/100.000, como é o caso de Portugal (menos de 20/100.000), os novos casos de tuberculose em profissionais de saúde parecem ser superiores à da população em geral. Baussano et al. estimaram uma incidência nesse grupo de trabalhadores de aproximadamente 67 casos /100.000 (Baussano et al., 2011; Shapovalova et al., 2016) e Duarte e Diniz citados por Oliveira (2014), referem que em Portugal se tem registado, nos últimos anos, uma incidência inferior de tuberculose entre profissionais de saúde.

A tuberculose continua a ser um problema importante de Medicina do Trabalho e de Saúde Ocupacional sobretudo entre os profissionais de saúde portugueses ainda que o foco de atenção das doenças causadas por agentes microbiológicos se continue a centrar nas doenças transmitidas por contato com o sangue ou derivados, designadamente o vírus da SIDA e os vírus de hepatites. As doenças transmitidas por via aérea eram muito menos valorizadas até à actual situação pandémica.

Poder-se-á achar “normal” os profissionais de saúde poderem ter tuberculose profissional, como se poderá achar “normal” um trabalhador que trabalhe com chumbo adoecer com um saturnismo. É o velho fatalismo do "ossos do ofício" 


Por outro lado, um médico do trabalho achará normal que nem um trabalhador exposto a chumbo adoeça com um saturnismo, nem um técnico de saúde que preste cuidados a um doente portador de tuberculose venha a contrair tuberculose. A razão dessa diferente forma de olhar para a mesma realidade reside na assunção que a metodologia de gestão de riscos profissionais, ainda que
frequentemente não reduza a zero esse risco, é muito eficaz na diminuição da probabilidade da sua ocorrência quando não é possível a sua eliminação.

Imagine-se a mesma “normalidade” em profissionais de saúde expostos a radiações ionizantes e as patologias relacionadas com essa exposição sem o rigoroso cumprimento de medidas básicas (ou muito sofisticadas) de prevenção desses efeitos. Regressaríamos ao início do século 20 do século passado com muitos casos de efeitos estocásticos de grande gravidade causados pela exposição a radiações.

O que deve ser normal (no sentido de esperável) é que a prevenção dos riscos profissionais em hospitais (e outros contextos profissionais) seja  inerente às boas práticas da prestação de cuidados e que esgotadas essas medidas os eventuais casos sejam identificados (e tratados se for caso disso), quer na perspetiva individual, quer na perspetiva da Saúde Pública.

As doenças causadas por agentes microbiológicos são uma realidade quase tão esquecida como as causadas por agentes psicossociais a que nestes tempos damos (e bem) tanta atenção no contexto actual dos riscos profissionais.

Extraído o contexto concreto e o eventual aproveitamento de tais tipos de situações o que não deveria ser normal é achar-se normal a ocorrência de qualquer doença profissional já que são, de facto, totalmente evitáveis se o sistema de Saúde Ocupacional estiver bem organizado e dotado de recursos adequados e profissionais competentes.


 Nota: modificado do texto publicado inicialmente no Blog Safemed.



Bibliografia

 

  • Baussano, I et al. 2013. Tuberculosis among healthcare workers. Emerging Infectious diseases Journal. 2013;17(3):488–494.
  • Oliveira, T. 2014. Infeção por Mycobacterium tuberculosis em profissionais de saúde: metodologia de avaliação do risco e sua aplicação num hospital central. XV Mestrado de Saúde Pública. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, 82 pp.
  • Shapovalova, O. et al. Tuberculose latente em Profissionais de Saúde: concordância entre dois testes diagnósticos. Revista Portuguesa de Saúde Pública. 2016;34(1):3-10.
  • Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. 2019. 2a ed., Lisboa: Diário de Bordo.

domingo, 25 de julho de 2021

As muito descuradas e esquecidas Doenças Profissionais



 Antonio Sousa-Uva


Em Patologia e Clínica desde há muito que algumas doenças são tão frequentes em determinadas profissões que a sua designação inclui essa “ligação”, como são os exemplos da Asma dos Padeiros, do Eczema dos Pedreiros, do Pulmão do Sulfatador de Vinhas ou do Pulmão dos Criadores de Aves. Apesar dessa tão forte ligação, talvez pela sua incidência e prevalência serem pouco expressivas relativamente às patologias de uma sociedade cada vez mais envelhecida, a atenção que obtêm de todos não é muita, se é que é alguma.

 

Tal poderia ocorrer essencialmente na população geral, mas até os médicos, para além da evocação da necessidade de conhecer a profissão na colheita de qualquer história clínica em Semiologia ou em Propedêutica não lhe atribuem muitas vezes suficiente importância. De facto, a Patologia e a Clínica do Trabalho não são profusamente abordadas na formação inicial em Medicina ou outras Ciências Médicas. Isso, de resto, também acontece em Toxicologia, e de uma maneira ainda mais marcada e, atrevo-me a dizer, muitas vezes de forma muito desatenta, em Toxicologia do Trabalho.


No nosso caso concreto, porquê então o interesse por essas doenças? No decurso do Serviço Médico à Periferia (esse sim o pai do Serviço Nacional de Saúde que talvez tenha mãe desconhecida) deparámo-nos com alguns casos de “infecções respiratórias recorrentes” em diverso doentes que trabalhavam numa fábrica de transformação de cortiça em S. Brás de Alportel e que se vieram a revelar casos de Suberose. Tal esforço de investigação (não só clínica) determinou o interesse pela Patologia do Trabalho, pela Medicina do Trabalho e pela Saúde Ocupacional que não só se mantém como actualmente até se intensifica.


A Suberose é, de facto, uma Alveolite Alérgica Extrínseca provocada pela exposição a poeiras de cortiça, descrita clinicamente por Vinte-e-Um Mendes e por Lopo Cancella de Abreu em meados do século passado, ambos médicos portugueses, que ligaram diversa sintomatologia respiratória à exposição a poeiras de cortiça, denominando-a, como se referiu, Suberose.


Estudos subsequentes, designadamente de Ramiro Ávila1, e de alguns outros como são os casos de Thomé Vilar, de Telles de Araújo e, por exemplo, de Cortez Pimentel (todos já falecidos, alguns dos quais bem recentemente) foram decisivos para o conhecimento da história natural dessa doença2. Esses autores deveriam ser mais recordados pela sua excelência de médicos e investigadores, “geminação” hoje, felizmente, cada vez mais frequente ou, quanto mais não seja, por terem “descoberto” a nível mundial (e descrito) esse quadro nosológico3.


As doenças profissionais, cujo exemplo da Suberose distingue a Medicina Portuguesa essencialmente nas especialidades de Pneumologia, e de Medicina do Trabalho, não têm uma importante frequência, mas são doenças quase sempre incapacitantes e até, por vezes, auto-evolutivas mesmo após o afastamento do agente etiológico, como sucede, por exemplo na Silicose.


A pergunta que se pode colocar é se perder a saúde (ou a vida) a “ganhar a vida” fará algum sentido? A prevenção das doenças profissionais é, por isso, indispensável e, de facto, “só se previne o que se conhece”. 


A COVID-19, como doença profissional em profissionais de saúde, agora tão propagada espera-se que seja um bom incentivo para todos aprendermos um pouco mais mais sobre doenças profissionais.


Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.


Referências bibliográficas

 

  •    Ávila R et al. Estudo epidemiológico da doença respiratória dos trabalhadores da indústria da cortiça. O Médico. 1973; 68:257.
  •    Sousa-Uva A.  Suberose In: Mendes, René (Org.). Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador: Conceitos – Definições – História – Cultura. Novo Hamburgo/RS: Proteção Publicações, 2018. 1.280 p.  

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Saúde Ocupacional e Assédio moral no Local de Trabalho



Antonio Sousa-Uva 


A Saúde e a Segurança do Trabalho (ou a Saúde Ocupacional, se for preferível, ou até mesmo a Segurança, Higiene e Saúde dos trabalhadores nos Locais de Trabalho) abrangem uma profusa pluralidade disciplinar, na abordagem das denominadas “doenças ligadas ao trabalho” (no conceito mais lato que inclui os acidentes de trabalho) que compreendem um amplo conjunto de situações em que o trabalho, de alguma forma, intervém na causa ou no desfecho dessas patologias (Uva; Graça, 2004).

Independentemente da natureza das inter-relações entre o ambiente de trabalho (no seu sentido mais amplo) e a saúde, as condições de ocorrência de efeitos negativos para a saúde pertence sempre ao mundo do trabalho ainda que existam, sempre, fatores de natureza individual (do trabalhador) que podem estar implicados que são muitas vezes pouco valorizados.

Os fatores de risco psicossociais que têm adquirido um “infeliz” protagonismo entre os factores de risco de natureza profissional justificaram até o protagonismo de campanhas “Locais de trabalho seguros e saudáveis”.

A “emergência” dos riscos correlacionados está, por certo, mais ligada à crescente atenção dos diversos agentes que intervêm nas relações trabalho/doença e não tanto na sua importância que sempre foi relevante.

Têm sido usadas inúmeras formas de fazer referência ao acto de provocar uma violência psicológica no trabalho, de forma repetida e sistemática, com o objectivo de humilhar, isolar e desacreditar um trabalhador, a maioria das quais em língua inglesa: (i) bulling; (ii) mobbing; (iii) moral harassment ou (iv) psychological violence. Objetiva-se nesses actos:


      •  impedir o trabalhador de se exprimir;
      •  isolar o trabalhador;
      •  desconsiderar o trabalhador em presença de colegas de trabalho;
      •  desacreditar o trabalhador no seu trabalho;
      •   comprometer a saúde do trabalhador; ...

O trabalhador assediado, para que o assédio moral produza efeito, inicia uma sucessão de acontecimentos que, no essencial, provocam perda da autoestima e da autoconfiança em que se alicerça outra sintomatologia.

Na sua grande maioria, as situações de assédio moral não têm sequer qualquer tipo de “justificação” podendo estar na sua origem aspectos de incompatibilidade interpessoal relacionada (ou não) com a (in)competência profissional ou, outras vezes, associar-se a estratégias organizacionais que poderiam ser designadas como “perversas” .

A dimensão do problema é, todavia, cerca de cinco vezes superior à discriminação em relação à religião, origem étnica ou opção sexual, ainda que a sua visibilidade pública seja bem menor (EFILWC, 2007).

Em qualquer situação de assédio moral existe um assediador e um assediado em contexto de trabalho. Qualquer processo que tenha como finalidade o desenho, a implementação e a manutenção de medidas de redução (ou eliminação) desse risco deve abordar sistemicamente todos os aspetos correlacionados e não apenas os fatores de natureza individual. Dito de outra forma, as empresas e outras organizações devem desenvolver metodologias de, no mínimo, mitigação dos seus efeitos. 

 

Nota: Adaptado de texto publicado no blog Safemed.


Bibliografia

  •  EFILWC. European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions – Fourth European Working Conditions Survey. 2007
  •  Hirigoyen, M-F. Assédio, Coacção e Violência no Quotidiano. Cascais: Editora Pergaminho, 1999.
  •  Hirigoyen, M-F. Assédio no trabalho, como distinguir a verdade. Cascais: Editora Pergaminho, 2002.
  •  Uva, A.  A Saúde dos Trabalhadores da Saúde. Reflectir Saúde. 6:1 (1996) 9-16.
  •  Uva, A.S.; Graça, L. Saúde e Segurança do Trabalho. Glossário. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2004 (Cadernos/ Avulso; 4).
  •  Uva, A.S. Saúde ocupacional e assédio moral no local de trabalho. SOCIUS Working papers - Instituto Superior de Economia e Gestão, 2008.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Será útil o ensino da Medicina do Trabalho em Portugal? porquê? com quem? e, sobretudo, para quê?

    



                                                                                        Antonio Sousa Uva

O ensino da Medicina do Trabalho foi assegurado em Portugal, desde 1963, pelo Instituto de Higiene Dr. Ricardo Jorge, como especialização do Curso de Medicina Sanitária, na área da Medicina do Trabalho.

O ensino da Medicina do Trabalho está por isso, em termos históricos, associado à formação especializada de médicos do trabalho, através de um curso que constituiu habilitação legal para o exercício da Medicina do Trabalho até ao início deste século. A sua criação está intimamente ligada aos serviços médicos do trabalho, inicialmente no âmbito das disposições técnico-normativas e jurídicas de 1962 sobre a prevenção da silicose, nas minas, nos estabelecimentos industriais e em outros locais de trabalho em que existia o risco dessa doença profissional.

Em 1966 foi criada a Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical, transitando o referido Curso de Medicina do Trabalho para essa instituição. O diploma legal regulamentar cria então a “cadeira de Higiene e Medicina do Trabalho”, subdividida em cinco disciplinas: Higiene do Trabalho; Fisiologia do Trabalho e Ergonomia; Patologia e Clínica do Trabalho; Organização dos Serviços Médicos do Trabalho e Legislação do Trabalho.

Em 1972  é criada a Escola Nacional de Saúde Pública, inicialmente na dependência do Instituto Nacional de Saúde (INSA) e, a partir de 1976, de forma autónoma, ano em que deixou de constituir o sector de ensino do INSA (já passaram 50 anos).

A partir de 1989, são criados dois novos Cursos de Medicina do Trabalho, o primeiro dos quais na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e o segundo na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Naquele mesmo ano, o então novo curso da Universidade de Coimbra “... é considerado habilitação profissional suficiente para o exercício da medicina do trabalho ...”, deixando a Escola Nacional de Saúde Pública de deter o monopólio da formação de médicos do trabalho em Portugal. Só em 1991 o Curso de Medicina do Trabalho da Universidade do Porto tem o mesmo reconhecimento.

Apesar da especialidade de Medicina do Trabalho ter sido criada em 1979 (Ordem dos Médicos) é só na alvorada do actual século que se passa a atribuir-lhe importância como condição de exercício que, de resto, hoje é consignada no actual enquadramento jurídico-normativo no programa de formação em Medicina do Trabalho, inicialmente como primeiros dois anos da formação e hoje como formação teórica daquele plano. 

Porque terão decorrido mais de vinte anos de espera para serem operadas tais transformações? Na resposta a esta questão poderá estar, pelo menos parcialmente, a compreensão do que actualmente se passa.

Apesar dessas grandes transformações não se conhece um debate na nossa sociedade, nem tão pouco a nível profissional, que discuta a utilidade dessa formação para o exercício da Medicina do Trabalho, interessantemente perante a insistência da Academia nessa necessidade. Porquê? para quando? com quem? e, sobretudo, para quê? 

Quem espera sempre alcança” diz-se ... e esse debate por certo será feito. Interessa no entanto dizer que quanto mais tarde for feito mais instabilidade e até mal-entendidos surgirão e mais tumultuoso será o percurso que objective aquilo que se pretende com a Medicina do Trabalho: a prevenção dos riscos profissionais, com especial enfoque na prevenção médica, a decisão sobre a aptidão para o trabalho e a manutenção da capacidade de trabalho e a promoção da saúde de quem trabalha, numa perspectiva de intervenção multidisciplinar e centrada na actividade de trabalho e nas condições em que é exercida.

A formação em Medicina do Trabalho, única (no passado) ou entre outras acções formativas (no presente), parece ser indiscutível na sociedade portuguesa (como de resto na maior parte dos países europeus). 

As questões que se colocarão poderão ser uma melhor articulação entre o exercício profissional e o estudo, investigação e ensino em Medicina do Trabalho? 

ou no contexto actual do exercício da Medicina do Trabalho não se considera isso necessário?

Será satisfatório o exercício muito "escorado" no cumprimento "administrativo" do que é inspeccionável? 

Convirá, ou não, a tal propósito afirmar que o cumprimento da lei é um meio para atingir os objectivos da Medicina do Trabalho e não um fim em si mesmo?

O que será mais determinante para a promoção e protecção da saúde de quem trabalha? O conhecimento aprofundado das relações trabalho/saúde(doença) previstos na lei ou o cumprimento de determinações documentais, muitas vezes sem qualquer "conteúdo", igualmente previstos? 

Do que estamos então à espera para fazer esse debate?


Nota: Adaptado do texto publicado, inicialmente, no blog Safemed.