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quarta-feira, 28 de junho de 2023

Contribuição para a história da criação da Carreira Médica de Medicina do Trabalho


 


Antonio Sousa-Uva


Há quem diga que o que fica para a história nem sempre faz jus à verdade. Vem isto a propósito, entre outras, de uma reivindicação pública então assumida para a criação médica da carreira de Medicina do Trabalho da qual fui primeiro subscritor (com outros cinco médicos) em fevereiro de 2006. Dizia-se então:

" ... O desenvolvimento da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores no Local de Trabalho está intimamente ligado à formação de recursos humanos especializados como, Técnicos de Segurança, Higienistas do Trabalho, Ergonomistas, Enfermeiros do Trabalho e Médicos do Trabalho, entre outros. A garantia de formação adequada do ponto de vista técnico e científico dos Médicos do Trabalho, não pode nem deve ser desligada da formação prática apropriada que, nas restantes Carreiras Médicas, é assegurada pelos respectivos Internatos Médicos oficiais.

Não existindo o Internato em Medicina do Trabalho, a Ordem dos Médicos pôs em marcha uma modalidade de formação complementar ao Curso de Medicina do Trabalho que, apesar da boa vontade dos seus promotores, não deixa de colocar os formandos numa situação de clara inferioridade por razões diversas, entre as quais, a mais importante se relaciona com a impossibilidade dos internos se poderem dedicar em pleno à formação/acção em área técnico-científica cada vez mais complexa e mais exigente.

Com a publicação do Decreto-lei nº 488/99, de 17 de Novembro foi estendido à Administração Pública o regime jurídico do enquadramento da segurança, higiene e saúde no trabalho aprovado pelo Decreto-Lei nº 441/91 de 14 de Novembro.

Basta atender à magnitude da força laboral existente nos organismos da administração central, local e regional (cerca de 750 mil trabalhadores) para estimar as necessidades em profissionais de saúde ocupacional de 200 médicos do trabalho, 400 técnicos de higiene e segurança e 200 enfermeiros a tempo inteiro, segunda a proposta legal menos exigente (um médico, dois técnicos de higiene e segurança e um enfermeiro por 3.750 trabalhadores).

No sector da saúde, onde a generalidade das actividades é de risco elevado, a estimativa mais adequada aponta para um médico do trabalho para 1500 trabalhadores. Por consequência serão necessários 80 Médicos do Trabalho para atender aos 120 mil trabalhadores dos Hospitais, Centros de Saúde e outros serviços centrais e regionais, não incluindo a resposta às exigências em cuidados primários de saúde.

As necessidades públicas de médicos do trabalho são razão necessária e suficiente para organizar a Carreira Médica de Medicina do Trabalho, tantas vezes prometida e nunca concretizada. A oficialização desta formação médica não só garantiria a preparação de quadros que permitiriam à Administração Pública o cumprimento da legislação que a abrange, como asseguraria a qualidade da intervenção destes profissionais na salvaguarda da saúde e do bem estar dos trabalhadores da administração central, local e regional, suporte essencial de um desenvolvimento económico e social sustentável.

Os subscritores desta reivindicação estão certos que os responsáveis políticos ao nível do Governo, da Assembleia da República e da Presidência da República não deixarão de levar em linha de conta os mais altos interesses nacionais, cumprindo e fazendo cumprir o imperativo legal e constitucional da defesa e garantia da saúde dos trabalhadores da Administração Pública ...".

A carreira viria a ser criada e alguns anos depois viria a ser aprovado o seu plano de formação que ainda vigora.

Passados estes anos terá a Administração Pública promovido as iniciativas suficientes para melhorar a defesa e garantia da saúde dos seus trabalhadores? Muitas respostas são possíveis, mas todas ajudarão, por certo, à reflexão necessária a compreender o presente para perspectivar um melhor futuro.

Sintra, 28 de junho de 2023

quinta-feira, 1 de junho de 2023

O que se exigia a trabalhadora(e)s! e não foi assim há tanto tempo ...

 


Antonio Sousa-Uva


Não decorreram assim tantos anos quanto se poderia pensar da época em que se impunham medidas laborais com grande impacto na vida da(o)s trabalhadora(e)s. Recentemente adquiri, num alfarrabista, um livro sobre a "A campanha pelo casamento das telefonistas" datado de 1950. 

 

A Liga Portuguesa de Profilaxia Social (julgo que ainda existente e em actividade), autora do livro, que no final deste ano perfaz um século (foi fundada em 1924) iniciou, no primeiro semestre de 1939, uma campanha para anular a proibição de as telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company, Limited poderem casar, que está na origem da edição. Por estranho que hoje tanto pareça, nessa altura essa era uma norma, tal como para as enfermeiras dos Hospitais Civis e outras profissionais, que apenas abrangia mulheres. Tal revela, por certo, a forma como a sociedade, na época, olhava para os cidadãos, no caso em apreço na perspetiva do sexo (ou género se se preferir ...).

 

Tal exemplifica, igualmente, a influência do trabalho na vida da(o)s trabalhadora(e)s e não só sobre a sua saúde.  No 1º semestre de 1939 iniciou-se a campanha que chegou, em dezembro desse ano, à Assembleia Nacional onde foi, inclusivamente, evocada a sua inconstitucionalidade e que, mais tarde, viria a ser revogada. 

 

Aquela obra literária inclui inúmeros depoimentos e artigos de Imprensa a favor da campanha em que inúmeros cidadãos “exigem” a revogação dessa norma, quase sempre cidadãos com grande preponderância na sociedade e igual capacidade de influenciar a opinião em tal domínio. É muito interessante ler (e reler) os argumentos utilizados e tentar compreender a cultura então dominante que determinava tão grande diferença entre homens e mulheres, já que os trabalhadores do sexo masculino nas mesmas funções não sofriam a mesma "punição". 

 

É indispensável ter presente que tal passou-se numa época relativamente recente já que muitos milhares de cidadãos de então ainda hoje estarão vivos. Essa "proximidade" deveria determinar uma reflexão profunda sobre o trabalho humano e, designadamente, sobre a importância que hoje se confere às relações entre a saúde e o trabalho em que muitos ainda consideram que, por exemplo, um acidente de trabalho é fruto do "acaso" ou mesmo de um "azar". Note-se que ao acidente até se denomina “infortúnio” (ou “falta de sorte”). 

 

O que acontece em relação às doenças profissionais e a outras formas de o trabalho interferir na história das doenças ainda é menos valorizado e encarado por muitos como uma vulnerabilidade de alguns trabalhadores que deveria ser minorada por exames de admissão "travestidos" de uma espécie de "seleção".

 

De facto, a literacia no domínio da Saúde Ocupacional não é, entre nós, muito "robusta" e a sua perspetiva é mais frequentemente encarada como um custo do que como um investimento (para muitos mais uma “taxinha” dada a sua obrigatoriedade). De facto, o investimento em trabalhadores saudáveis (“produtores”) nem na perspetiva económica é, muitas vezes, considerado como algo indispensável à qualidade do “produto” que exigiria, por certo, mais atenção.

 

Note-se, como se referiu, que também, apenas a título de exemplo, as enfermeiras dos Hospitais Civis tinham norma similar que também vigorou até bem mais tarde (início dos anos de 1960) desse período pós 2ª Guerra Mundial.

 

Sendo o trabalho indispensável à criação de riqueza, mesmo naquela perspetiva (económica) não seria desejável mais investimento em tal domínio?

 

Estaremos a valorizar suficientemente a saúde (e a segurança) de quem trabalha?

 

Fará algum sentido “perder a vida” a ganhá-la?

 

 

Bibliografia

 

  • Liga Portuguesa de Profilaxia Social. A campanha pelo casamento das telefonistas. Porto: Imprensa Social, 1950.

  • Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.



Nota: Publicado, inicialmente, em Healthnews, informação em saúde.