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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Dois séculos da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa

 


                                                                                          Antonio Sousa-Uva

 

Este ano (e neste quarto trimestre) a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa perfaz 200 anos de existência. Desde a sua fundação, em 1 de dezembro de 1822, que a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa tem por finalidade contribuir para o aperfeiçoamento dos conhecimentos médicos em todas as suas dimensões.

 

A Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, cuja história deve constituir motivo de orgulho para todos nós, é, pois, das agremiações médicas mais antigas do mundo, sendo criada no mesmo ano do aparecimento da sua homóloga francesa (a Academia de Medicina de Paris), dez anos antes da British Medical Association e precedendo, também, em vinte e cinco anos a American Medical Association. É certo que a Sociedade das Ciências Médicas, na primeira e efémera fase da sua existência, durou apenas seis meses, não resistindo - a par de todas as restantes instituições liberais daquela época - ao movimento insurreccional restaurador do absolutismo.

 

Foi berçário, em 1965, da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (prestes a completar 57 anos) que, entretanto, se autonomizou, como foi o caso de outras dezenas de sociedades médicas, algumas extintas, como a Sociedade Portuguesa de Saúde Pública (este ano renascida fora do seu seio e, aparentemente, sem relação com a sua antecessora). Tal política ocorreu na sequência das suas revisões estatutárias de 1955 que incluíram disposições de promoção da criação de secções especializadas.

Deve-se assinalar ainda a publicação do seu periódico “Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa” que iniciou a sua publicação em 1835 e que ainda mantém o seu título original e que antecedeu em 44 anos o “La Presse Médicale”.

É ainda no seu seio que nasceu a Academia Portuguesa de Medicina, em 30 de julho de 1991 que está na origem da Academia Nacional de Medicina de Portugal em 2007.

 

Bibliografia

  • Faria M. Contribuição da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho para o desenvolvimento da Saúde Ocupacional em Portugal. Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. 1986;CL (1):40-42.
  • Sousa Uva A. Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 1965-2005: quatro décadas de promoção da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2005 (SPMT 1965/2005) 69 pp.
  • Sousa Uva A. Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (1965 – 2015): Meio século de dedicação à Medicina do Trabalho e à Saúde Ocupacional   Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2015.
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Nota - Publicado, inicialmente, em Healthnews.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A Saúde num relance: a propósito do excesso de mortalidade




Antonio Sousa-Uva


Portugal foi, em 1948, um dos países fundadores da Organização Europeia de Cooperação Económica. Mais tarde, em 1960, com os Estados Unidos da América e o Canadá, os dezoito Estados fundadores originaram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) que a substituiu.


A OCDE publica, regularmente, o Health at a Glance com um conjunto interessante de indicadores de saúde que constitui há muito, para quem se dedica a esta área, um documento de consulta obrigatória. Para quem não se recorda, na primavera e outono de 2020, muito se falou do excesso de mortalidade a propósito da COVID-19, voltando agora, de novo, esse tema “a inflamar”. Tal, anteriormente, era abordado basicamente a propósito das ondas de calor (por exemplo, o índice Ícaro ou GATO, seu acrónimo em inglês).


É muito interessante verificar, mais uma vez e agora de forma mais consolidada, a discrepância entre a perspectiva política e a dos estudiosos e investigadores em relação a muitas matérias e, designadamente àquele excesso de mortalidade cuja explicação está, por certo, muito para além de abordagens baseadas em perspectivas demasiado simplistas. Apesar da muita “verborreia” sobre essa matéria, não parece restar dúvida que a COVID-19, directa ou indirectamente, poderá ter contribuído, de alguma forma, para um aumento de cerca de 16% do número esperado de mortes em 2020 e primeiro semestre de 2021.

Mais ainda, em 24 de 30 países a esperança de vida diminuiu (entre nós com repercussão na idade da reforma para 2023), destacando-se os EUA (menos 1,6 anos) e a Espanha (menos 1,5 anos), já que mais de 90% dos óbitos ocorreram em maiores de 60 anos e, claro e como sempre, em populações mais vulneráveis pelas mais variadas razões.

Menos falado tem sido o impacto na Saúde Mental e a “COVID crónica” (ou Long – quão longo? – COVID), esta última podendo atingir mais de um terço desses doentes. E menos ainda se tem falado das relações trabalho/saúde(doença) relacionadas, por exemplo, com respostas à pandemia, como o trabalho à distância.

No nosso caso, logo na primavera de 2020, também investigamos os aspectos relacionados com as repercussões na Saúde Mental dos médicos e de outros profissionais de saúde e também alguns aspectos relacionados com o teletrabalho. Estas matérias serão ainda, por certo, alvo de inúmeros outros estudos mais robustos e carecem, portanto, da criação de mais (e melhor) informação.

O que parece certo é que a actual pandemia teve, para além das consequências directas na saúde dos cidadãos, diversas outras repercussões indirectas, muitas delas ainda por esclarecer. Indirectamente parece óbvio o impacto na prestação de cuidados de saúde, por exemplo, das consequências do adiamento da precocidade dos diagnósticos (não só de cancro, que é disso um marcante exemplo). Mas a grande questão que “fermenta” é se esses atrasos se poderão relacionar com o actual aumento de mortalidade? Saberemos o suficiente sobre essas interdependências? O que estamos a fazer para criar e divulgar mais conhecimento nessa matéria?

 Por outro lado, simultaneamente, terá por certo ocorrido uma redução da mortalidade por acidentes rodoviários e de trabalho e por outras doenças infecciosas transmitidas por via aérea.  Certo é que, em 2020, nos países da OCDE e com os dados disponíveis, ocorreu um excesso de 1,8 milhões de mortes, em comparação com a média dos cinco anos anteriores (ainda em média, cerca de mais 11% de óbitos) e que tal achado deve determinar a criação de mais conhecimento nesse âmbito.

O impacto de uma pequena partícula viral ainda é incompletamente conhecido e irá muito para além das mais de seis centenas de milhões de casos “oficiais” de doença e dos mais de 6,5 milhões de óbitos. O Health at a Glance 2021 já indicia bem o início desse importante impacto na nossa saúde.

Os dados preliminares de 2021 apontam para o excesso de mortalidade, mais nos grupos etários mais velhos (65 ou mais anos) que, em alguns países e com se referiu, é superior a 15%, como por exemplo na nossa vizinha Espanha. Por cá, veremos o que sucederá, o que, por certo, também dependerá das respostas a ser dadas pelo nosso sistema de saúde (que, esclareça-se pela “enésima” vez, não é sinónimo de serviço nacional de saúde).


Nota: Publicado inicialmente em Healthnews.

domingo, 2 de outubro de 2022

A obrigação da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional: “a ocasião faz o ladrão” ou “a imposição leva ao faz de conta”?

 


                                                                                                                                                                                                                                                                        Antonio Sousa-Uva

Na Europa existe há muito, e em Portugal há mais de meio século, a obrigação da prestação de cuidados de Medicina do Trabalho, e mais recentemente de Saúde Ocupacional (ou se se preferir de Saúde e Segurança do Trabalho), determinado por legislação específica nesse domínio, abrangendo ao longo do tempo mais ou menos empresas e trabalhadores por conta de outrem.

Tal pressupõe que, dada a aplicação de coimas por incumprimento, a inexistência desse enquadramento legal determinaria que muitas entidades patronais não organizassem (ou adquirissem) tal tipo de estrutura organizativa para tal finalidade. Dito de forma díspar, essa organização é “imposta” como qualquer outro imposto, por exemplo em matéria fiscal.

Compreende-se o legislador que cria regras em tal domínio para evitar, abordemos de forma redutora aquelas obrigações, que a vigilância da saúde de quem trabalha e do seu ambiente de trabalho perspectivam a prevenção dos riscos profissionais centrada no trabalhador (Medicina do Trabalho ou Enfermagem do Trabalho, por exemplo) ou no ambiente de trabalho. Neste caso, quer na prevenção ambiental de acidentes de trabalho (Segurança do Trabalho), quer na prevenção ambiental de doenças profissionais (Higiene do Trabalho).

Assim sendo, as disposições legais determinam penalidades (coimas) para os incumpridores de algumas obrigações concretas que objectivam aquelas finalidades que, regra geral e no essencial, são avaliadas mais na forma do que no conteúdo. Dito de outra forma, aquelas penalidades vão-se circunscrever, no essencial, mais a actividades concretas do que às razões da sua "prescrição" o que pode encerrar, eventualmente, alguma dose de perversidade.

Esta situação traduz-se, por isso, muitas vezes, num jogo do “gato e do rato” em que o que, de facto, acontece é um “faz de conta” que, no essencial, cumpra (ou pareça cumprir) a imposição, mais do que a preocupação de proteger (e de promover) a saúde de quem trabalha.

O aqui retratado, que até pode ser interpretado como pessimista, ou até mesmo como caricatural, é, parece, a regra “arredando” a perspectiva que empresas saudáveis, económica e financeiramente, necessitam de trabalhadores saudáveis e seguros, já que a qualidade do “produto” não é perspectivável sem a qualidade do produtor (sendo, obviamente, a sua saúde e segurança, uma sua componente indiscutível). Não existe, portanto, uma verdadeira "autodeterminação empresarial" maioritária da sua necessidade, sobrepondo-se, quase sempre, a componente "impositiva".

Mais de meio século da aplicação do modelo sumariamente (ou até caricaturalmente) descrito não será suficiente para se repensar o paradigma existente?

Terá a Administração Pública investido o suficiente e feito o necessário para que essa matéria seja mais valorizada por todos os envolvidos (ou “players”)?

Deverão ser os técnicos de Saúde Ocupacional os principais “arautos” (ou mesmo pregoeiros ou até "vendedores") da protecção da saúde (e da segurança) de quem trabalha? Ou essa preocupação não poderá ser interpretada como a defesa dos seus interesses concretos?

Parece que há muito a fazer neste domínio e que empregados, empregadores, técnicos e “reguladores” deveriam, no essencial e salvo melhor opinião, fazer mais (competentemente) e falar um pouco menos … talvez os resultados fossem um pouco melhores!