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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Literacia em Saúde Ocupacional: necessidade ou exigência na prevenção dos riscos profissionais e na promoção da saúde no trabalho?

 


Antonio Sousa-Uva

prevenção de riscos

Diversas estimativas de diversas organizações, com destaque para as organizações das Nações Unidas, indicam o sofrimento, a morte e as implicações económicas das “doenças ligadas ao trabalho” e a consequente necessidade da sua prevenção. São, de facto, vários milhões de mortes que, pelo menos no plano teórico, podiam ser totalmente evitadas e, em termos práticos, pelo menos, muito diminuídas. Dito de outra maneira, mais ou menos em cada dois anos, no mundo, perdem a vida a ganhá-la o equivalente à população ativa de Portugal o que constitui uma imagem “esmagadora” e reveladora da necessidade de investir mais na prevenção dos riscos profissionais e na promoção da saúde no trabalho.


Das centenas de milhares de acidentes mortais e das centenas de milhões de acidentes de trabalho que se estima que anualmente ocorram no mundo e das ainda mais prevalentes doenças ligadas ao trabalho  (não só doenças profissionais) também muitas podiam ser evitadas se fossem adoptadas as medidas de prevenção adequadas. Temos, portanto, todos ainda tanto a fazer, já que tudo leva crer que o trabalho, por certo, não acabará.


As taxas de frequência de acidentes de trabalho por regiões do globo são muito díspares o que determina também a necessidade de “globalização” das medidas de proteção e de promoção da saúde de quem trabalha em vez da seleção “natural” dos países de mais baixa “renda” para concentrar a produção mais “agressiva” para a saúde por mais insuficiente regulamentação e controlo (uma espécie de exportação dos riscos profissionais). Por exemplo, as economias mais robustas têm uma população activa semelhante à da Índia, verificando-se, no entanto, que neste país ocorre um número de acidentes (incluindo os mortais) três vezes superior, apesar da economia informal ser intensamente dominante. Não poderia existir uma maior demonstração dos resultados potenciais daquela “globalização” em matéria de prevenção e da necessidade dessa globalização uma vez que a poupança em medidas de saúde e segurança cria concorrência desleal tão "odiada" pelas economias de mercado.


Muita da gestão dos riscos profissionais assenta em medidas centradas nos trabalhadores, mais relacionadas com a Medicina do Trabalho e outras, por outro lado, são mais focadas no ambiente de trabalho.


O “empoderamento” dos trabalhadores ampliando muito a sua literacia em Saúde Ocupacional é, se não ausente, muito incipiente, e deve ser vista como mais uma das principais medidas de aumento da perceção dos riscos profissionais que deveria ser mais “uma linha da frente” no combate às más condições de trabalho na perspetiva da Saúde e da Segurança do Trabalho. Tal, todavia, não é a regra e essa iliteracia é, em si mesmo, um factor de risco adicional.


É, consequentemente, urgente contribuir para a modificação de uma cultura muito dominante do “improviso” tão “impregnada” entre nós, para um clima e uma cultura de saúde e segurança que reduza, tendencialmente a zero, a probabilidade de ocorrência de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. E tal só será alcançado quando as práticas profissionais também exigirem o cumprimento de regras de saúde e segurança nas suas boas práticas e as sociedades se organizarem mais nesse sentido em vez da "imposição" actual que alimenta uma espécie de "jogo do gato e do rato" no cumprimento de normas e obrigações. Paradoxalmente, mas frequentemente, esses gastos são mesmo perspectivados como custos que encarecem o produto e que são um obstáculo à produção


Entre nós, apesar do percurso Europeu feito nas últimas três a quatro décadas, as medidas de organização do combate aos riscos profissionais tardam em “impregnar” a cultura organizacional nacional daquela urgência, circunscrevendo-se muitas vezes a aspetos formais de dispositivos normativos e de controlo do seu cumprimento “administrativo” do tipo "livra coima". 


Salvo melhor opinião, esse é “o caminho das pedras” para lá chegar e uma das maneiras de “tirar pedras” é investir muito, e organizadamente, na literacia dos trabalhadores (e de empregadores) nessas matérias. Caso contrário vai eternizar-se a perspectiva mais frequente de "olhar" a prevenção dos riscos profissionais e a promoção da saúde no trabalho como mais um "imposto" que dificulta o desenvolvimento e a robustez da economia. É que, de facto, o investimento nessa área é mais um elemento de "melhoria contínua" uma vez que não há qualidade do produto sem qualidade do produtor e dos meios de produção. A saúde e segurança do trabalho são, obviamente, disso parte integrante e não podem ser perspectivadas como um obstáculo à saúde financeira do nosso tecido empresarial. Será assim tão difícil perceber isso?  



Bibliografia


  • Sousa-Uva, A (ed). Trabalhadores saudáveis e seguros em locais de trabalho saudáveis e seguros, 2010, Lisboa: Petrica Editores.
  • Sousa-Uva, A (org). Saúde Ocupacional: o trabalho ou o trabalhador como principal alvo da sua ação? 2019, Lisboa: Petrica Editores.
  • Sousa-Uva ALeite ESerranheira F. Políticas de Saúde e Segurança do Trabalho: Obrigação legal ou opção das empresas (e outras organizações) na valorização dos seus recursos humanos? Segurança. 2010;196:12-15.


Nota: Publicado numa versão inicial no blog Safemed agora amplamente modificada.


sábado, 21 de agosto de 2021

Passado e presente da Saúde Ocupacional, perspetivando o seu futuro ...


 
 

Antonio Sousa-Uva


O trabalho pode afetar negativamente a saúde sendo, nos nossos dias, quase negligenciável a valorização do papel promotor de saúde que o trabalho deveria proporcionar. Tal é revelador da preponderância atribuída à componente preventiva dos riscos profissionais em detrimento da componente positiva (promotora) da saúde e do bem-estar, assim como dos aspectos relacionados com o desenvolvimento pessoal dos trabalhadores. Acresce a essa circunstância o maior investimento na prevenção ambiental dos acidentes de trabalho, pouco investimento na prevenção ambiental das doenças profissionais e quase nenhum investimento na prevenção centrada no trabalhador, a maior parte das vezes circunscrita a avaliações pouco (ou nada) específicas das situações concretas de trabalho.

 Qualquer que seja o modelo conceptual subjacente, a abordagem prática dos aspectos relativos às (inter)relações trabalho/saúde (doença) implica um conhecimento adequado dos factores profissionais em jogo e das respetivas repercussões para a saúde dos trabalhadores que se adquire através da análise do trabalho que, na perspectiva da saúde e da segurança, se caracteriza sempre pela sua complexidade (Sousa-Uva e Serranheira, 2019). Mas também exige igual conhecimento aprofundado da saúde individual dos trabalhadores.

Tal abordagem, baseada nos “factores (profissionais) de risco” identificados como responsáveis (reais ou potenciais) pelos efeitos “adversos” para a saúde, incluindo a ocorrência de situações de doença relacionada com o trabalho, constitui a abordagem “tradicional” da Medicina do Trabalho muito focada na vigilância médica (ou, preferivelmente, de saúde) dos trabalhadores. Esse grupo de variáveis tem constituído o alvo privilegiado dos estudos sobre as relações trabalho/doença realizados no âmbito (e na perspectiva) da intervenção mais característica da Medicina do Trabalho, e também da Segurança do Trabalho e da Higiene do Trabalho com o seu foco essencialmente ambiental.

Historicamente convencionámos denominar anteriormente (com alterações entretanto introduzidas) a evolução da Saúde Ocupacional (ou Saúde e Segurança do Trabalho) em cinco grandes períodos (Santos e Sousa Uva, 2009):


  • a fase da Proto-Medicina do Trabalho, desde perto da Antiguidade até à Segunda Grande Guerra;
  • a fase da Medicina do Trabalho Clássica, desde a Segunda Grande Guerra até à década de 1980;
  • a fase da Nova Saúde Ocupacional (SO), desde a década de 1980 até final dos anos de 1990; 
  • a fase da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho (SHSTLT), desde o final da década de 1990 até ao início do século (Saúde e Segurança do Trabalho no séc. XXI);
  • a fase da Saúde (e Segurança) do Trabalhador (que é una e indivisível) também até à actualidade.


De facto, essa evolução enquadra-se no trajecto destas áreas científicas e desenvolvimento de aspectos organizativos ao longo dos tempos (Sousa Uva, 2013;2014). Colocam-se todavia, hoje, muitas questões com o presente e o futuro da Saúde Ocupacional (ou da SHSTLT se se preferir), por exemplo:

A evolução, em 25 anos, de menos de uma centena de especialistas em Medicina do Trabalho para os atuais valores cerca de mais de dez vezes superiores também melhorou na mesma proporção os cuidados de Medicina do Trabalho prestados? 

A criação da carreira médica de Medicina do Trabalho há quase 15 anos e a sua formação específica há quase 10 anos mudou o panorama de exercício da Medicina do Trabalho?

E os mesmos aspectos, nos mesmos 25 anos, nos serviços prestados por Técnicos de Segurança (e Higiene) do Trabalho e outros técnicos?

Estarão as equipas de SO (ou SHSTLT) dotadas dos mais adequados recursos para os desafios colocados pela evolução das empresas (e outras organizações) e pela evolução dos sectores de actividade económica?

Formar para quê? Será possível continuar a definição de planos de ação (muitas vezes pouco mais do que "administrativos") de que não resultam atividades (e muito menos programas concretos de ação) por insuficiente dotação de recursos e de adequados modelos de aplicação?

Bastará o “cumprimento administrativo” da vigilância médica e ambiental para os objetivos atrás referidos da Saúde Ocupacional (ou SHSTLT)?

Sem fortalecimento da componente “inspetiva” valerá a pena investir em programas nacionais de SHSTLT (ou de Saúde Ocupacional) e em melhores e mais capazes técnicos?

Terão a grande maioria dos serviços de prestação de actividades de SHSTLT (integrados ou separados) as melhores práticas?

Será a missão da Saúde Ocupacional (ou SHSTLT) entendida por trabalhadores e empregadores?


Tudo leva a crer que os tempos que se avizinham não sejam promotores de grandes investimentos em SHSTLT, pelo menos enquanto esta for encarada mais como um custo do que como um investimento como, de resto, desde há muito é entendida, senão mesmo como mais um "imposto" aplicado às empresas. E tal acontece num revisitar, muito frequente e ao longo dos tempos, de constantes avanços e recuos determinados por inúmeros factores que não se esgotam apenas nos ciclos económicos. Isso apesar da criação e da divulgação de conhecimento em matéria de prevenção dos riscos profissionais ser cada vez maior e, portanto, se aumentar paulatinamente ainda mais o fosso entre o conhecimento dos fatores de risco (ou perigos) e dos riscos profissionais e a sua aplicação concreta em medidas destinadas à sua prevenção.

Oxalá os cidadãos, principalmente empregadores e trabalhadores e seus representantes, mais do que os técnicos de SHSTLT, coloquem nestes aspetos o grau de prioridade que force, cada vez mais, os políticos a não abandonar a intervenção reguladora que permita que as pessoas que trabalham não percam a vida a ganhá-la (designação deste blog) e que os técnicos exerçam cada vez com mais competência as suas atividades e, não menos importante, em contexto ético adequado. De facto, o enquadramento ético do exercício da SHSTLT é cada vez mais indispensável à missão dos serviços (e empresas) que o praticam.

É que a cultura de saúde e segurança não é mais do que uma miragem quando nem sequer o clima organizacional (e empresarial) é maioritariamente de cumprimento das disposições em matéria de protecção da saúde (e da segurança) dos trabalhadores. Dito de outra forma, a Saúde Ocupacional (ou SHSLT) é maioritariamente um dever, uma obrigação, uma opção ou uma imposição?

Será, talvez, na resposta a essa pergunta que se encontrará (pelo menos parcialmente) um melhor (ou um outro) caminho para a tão "badalada" cultura de saúde (e segurança)?


Nota: Publicado no blog Safemed numa versão inicial, agora amplamente modificada.


Bibliografia

  • Santos CS, Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho: notas historiográficas com futuro. Lisboa: ACT, 2009, 231 pp.
  • Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho em Portugal: revisitando, através de notas soltas, os últimos 50 anos – 1ª parte. Segurança. 2013, 217:3-5.
  • Sousa-Uva A. Saúde e Segurança do Trabalho em Portugal: revisitando, através de notas soltas, os últimos 50 anos – 2ª parte. Segurança. 2014, 218:3-5.

  • Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.



quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Idade activa e Reforma: na perspectiva da saúde do trabalhador fará sentido o "tudo ou nada"?

 


Antonio Sousa-Uva

 

Nos últimos anos a idade da reforma tem vindo a aumentar um pouco por toda a Europa e, obviamente, também em Portugal em que se constata ainda uma penalização crescente no que concerne às reformas antecipadas. Não serão alheios a essa circunstância, entre outros, o aumento da esperança de vida.

 

De facto, o envelhecimento da população nas sociedades do mundo ocidental tem levado a importantes mudanças dos sistemas de Segurança Social ainda que essa extensão da vida ativa não seja acompanhada de intervenções na melhoria das condições de trabalho inerentes a tal prolongamento dessa vida, como abordámos neste blog em outro texto. Seria desejável que a “capacidade de trabalho” ao longo da vida se mantivesse nos níveis do início da atividade profissional em idades jovens mas esse prolongamento da vida ativa coloca importantes desafios em diversos contextos e, também, na perspetiva da Saúde Ocupacional e de outras disciplinas como a Ergonomia encarada na perspetiva da Saúde e Segurança do Trabalho (SST).

 

Um trabalhador saudável, ativo e produtivo, sem doenças naturais ou ocupacionais e apto e motivado para o exercício da sua atividade profissional, naturalmente em todas as idades, deveria determinar ações concretas, designadamente no que ao envelhecimento dos trabalhadores diz respeito. Sabe-se que várias funções biológicas declinam com a idade.

 

Também se sabe que existe uma ampla variabilidade individual nessas vulnerabilidades muito dependente, para além de fatores individuais, de fatores relacionados com o ambiente de trabalho, da atividade desenvolvida e da organização do trabalho. Por exemplo, actividades profissionais que determinem grandes exigências físicas como seria, caricaturalmente, o exemplo de alguém exercer a profissão de futebolista com 90 anos de idade...

 

É que se as empresas e outras organizações passarem a integrar a realidade do envelhecimento da sua força de trabalho será indispensável conceber o trabalho para os trabalhadores (idosos ou não) numa perspetiva de aliar a capacidade restante desses trabalhadores às exigências concretas que o trabalho determina. Por exemplo, a intensidade luminosa necessária para uma atividade pode determinar valores muito mais elevados se o executante é um sexagenário em relação à mesma intensidade para um trabalhador com vinte anos. E tido em conta esse aspeto, a performance será totalmente equivalente em termos de eficácia. Ou seja, trabalhar até mais tarde exige que o trabalho seja concebido para esses trabalhadores concretos em vez do que se tem tornado comum que alguns denominam "trabalhador médio" (abstracção que só serve para amputar as variáveis individuais de um qualquer posto de trabalho).

 

A decisão de trabalhar ou de se reformar depende de inúmeros fatores que estão para além do enquadramento legal nesse domínio, de que se destaca logo a vontade do trabalhador. A questão para refletir que aqui se deixa é se faz sentido o “tudo ou nada” na aptidão para o trabalho relacionada com o envelhecimento e as exigências do trabalho. 


Não seria desejável encarar a possibilidade de ter mais alguma criatividade em, num período pré-reforma de dimensão variável e naturalmente com cariz voluntária, se criarem condições para outros modelos de passagem à reforma que não seja de “tudo ou nada”? 


É que estou em crer que todos ganhariam: trabalhadores, empregadores e Segurança Social.

 

Bibliografia

  • Crawford J. Working until 70, government policy, economic need and role of Ergonomics and Occupational Health. International Congress Series. 2005;1280:29-34.
  • McDermott H et al. Developing occupational health services for active age management. Occupational Medicine. 2010;60(3):193–204.
  • Sousa-Uva, A (ed). Trabalhadores saudáveis e seguros em locais de trabalho saudáveis e seguros, 2010, Lisboa: Petrica Editores.
  • Sousa-Uva A, Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. 2019, Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed.

Nota: Adaptado a partir de um texto original publicado no blog Safemed.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Envelhecimento e Trabalho: "velhos são os trapos"!



 Antonio Sousa-Uva


Na atual fase de desenvolvimento da Saúde Ocupacional, ou da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho (SHSTLT) se se preferir, pretende-se um ambiente de trabalho saudável, seguro e satisfatoriamente confortável e um trabalhador saudável, ativo e produtivo, sem doenças naturais ou ocupacionais e apto e motivado para o exercício da sua atividade profissional, com satisfação e desenvolvendo-se de forma pessoal e profissional. Naturalmente em qualquer idade.

 

O trabalho pode afetar negativamente a saúde sendo, nos nossos dias, negligenciável a valorização do papel promotor de saúde que o trabalho deveria proporcionar que tem sido tema de outros textos deste blog. Tal é revelador da preponderância atribuída à componente preventiva dos riscos profissionais em detrimento da componente positiva (promotora) da saúde e do bem-estar, assim como dos aspetos relacionados com o desenvolvimento pessoal dos trabalhadores de que beneficiaria por certo a organização, através da valorização de tão importantes recursos estratégicos e, também e obviamente, o trabalhador.

 

O envelhecimento da população nas sociedades do mundo ocidental tem levado a importantes mudanças dos sistemas de Segurança Social com repercussões, como acontece entre nós, na idade da reforma (cada vez mais tardia) e, consequentemente, com a extensão da vida ativa.

 

Seria desejável que a “capacidade de trabalho” ao longo da vida se mantivesse nos níveis do início da atividade profissional em idades jovens. Sabe-se que o prolongamento da vida ativa é a regra no mundo ocidental, o que coloca importantes desafios em diversos contextos e também na perspetiva da Saúde Ocupacional.

 

Sabe-se, por exemplo, que a capacidade física, medida através da capacidade cardiorrespiratória ou da capacidade musculoesquelética, declina com a idade, para não referir a diminuição das capacidades auditiva ou visual de todos conhecidas.

 

Também se sabe que existe uma ampla variabilidade individual nessas vulnerabilidades muito dependente, para além de fatores individuais, de fatores relacionados com o ambiente de trabalho, da atividade desenvolvida e da organização do trabalho. E sabe-se ainda que a adopção de estilos de vida saudáveis pode influenciar positivamente a capacidade de trabalho (na língua inglesa, work ability).

 

Exige-se cada vez mais que a Saúde e Segurança do Trabalho não se circunscreva à prevenção dos riscos profissionais (e mesmo nesses valorizando muito mais as variáveis individuais que, quase sempre, não são sequer tidas em conta) e valorize mais ações que promovam a “empregabilidade” do trabalhador, incrementando iniciativas que desenvolvam a aptidão “máxima” para o trabalho em toda a vida ativa.

 

Nos últimos anos, a idade da reforma tem vindo a aumentar um pouco por toda a Europa e, obviamente, também em Portugal em que se constata ainda uma penalização crescente (e "alarvemente" penalizadora) no que concerne às reformas antecipadas. Não será alheio a essa circunstância, entre outros, o aumento da esperança de vida e a redução da taxa de natalidade.

 

De facto, o envelhecimento da população nas sociedades do mundo ocidental tem levado a importantes mudanças dos sistemas de Segurança Social ainda que essa extensão da vida ativa não seja, quase nunca, acompanhada de intervenções na melhoria das condições de trabalho inerentes a tal prolongamento da vida ativa e, menos ainda, a propostas inovadoras de transição entre a vida activa e a aposentação.

 

A decisão de trabalhar ou de se reformar depende de inúmeros fatores que estão muito para além do enquadramento legal nesse domínio. Tal decisão inicia-se desde logo com a resposta às perguntas: 


Posso trabalhar? 

Tenho saúde para trabalhar? 

A que se acrescenta essa necessidade ou esse querer. Quero trabalhar?


A Saúde Ocupacional (ou a SHSTLT) deveria interessar-se por estas áreas promovendo a adequação do trabalho ao trabalhador “envelhecido“, adaptando o trabalho às condições concretas relacionadas com o envelhecimento dos trabalhadores. É que não se pode querer "sol na eira e chuva no nabal"! Trabalhar em idades mais avançadas pode determinar a necessidade de melhorar as condições de trabalho e a actividade e trabalho no sentido do que há uns anos se denominava "adaptar o trabalhador ao trabalho e o trabalho ao trabalhador". Convenhamos que nem sempre este trajecto tem esses dois sentidos ... se não mesmo quase sempre.

 

Bibliografia
 

  • Costa G, Sartori S. Ageing, working hours and work ability. Ergonomics. 2007;50(11) 1914-1930.
  • Ilmarinen J. – Ageing workers. Occupational and Environmental Medicine. 2001;58:546-552.
  • Monge J, Sousa-Uva A, Serranheira F. et al. O trabalhador idoso: que desafios e implicações nas situações de trabalho? E para a Saúde e Segurança do Trabalho? In SOUSA-UVA, A. (ed.) - Trabalhadores saudáveis e seguros em locais de trabalho saudáveis e seguros, Lisboa, Petrica Editores, 2011.
  • Sousa-Uva A., Serranheira F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar? Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed.,2019.
 

Nota: Adaptado a partir de um texto original publicado no blog Safemed.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Riscos profissionais em docentes: "dar aulas e receber doenças"?

 


Antonio Sousa-Uva


Em Saúde Ocupacional o sector dos serviços (terciário) tem sido muito pouco valorizado em matéria de riscos profissionais, relativamente à atenção que o sector secundário tem recebido a que não será alheio, por certo, o dramatismo das situações de acidente de trabalho e, até mesmo, das doenças profissionais que aí ocorrem.


Nos últimos vinte e cinco anos, em Portugal, o sector da saúde tem merecido alguma atenção, mantendo-se a área do ensino quase que totalmente “abandonada” em matéria de riscos profissionais, designadamente a profissão docente. Tal circunstância mantém-se negligenciada, apesar do aumento das referências em meios de comunicação social a aspectos relacionados, por exemplo, com a violência nas escolas ou com outros riscos de natureza psicossocial.


As condições de trabalho e a actividade dos professores tem conduzido, no mundo mais desenvolvido, a situações muito frequentes de mal-estar e de morbilidade acrescida, designadamente os aspectos relacionados com a saúde mental, a patologia da voz e a patologia alérgica e/ou irritativa das vias respiratórias.


O professor é um profissional cuja comunicação verbal é indispensável, ainda que a qualidade vocal não seja decisiva para o seu desempenho profissional, quando comparada, por exemplo, com outros profissionais como os cantores, ainda que a sobrecarga de uso seja considerável. O professor confronta-se com horas de uso vocal contínuo em condições muitas vezes adversas do ponto de vista do ambiente (por exemplo de ruído ou das condições térmicas) e de stress. Estes, e outros factores (como por exemplo o consumo de álcool e de tabaco), podem contribuir para o facto de estarem entre os grupos profissionais que, com frequência, procuram apoio para a solução de problemas da voz.


Os sintomas vocais mais referidos são a fadiga vocal, a rouquidão, a voz mais fraca que o habitual, o esforço vocal e outros problemas médicos que influenciam a voz como por exemplo, a inflamação das vias aéreas superiores. Os sintomas de desconforto físico mais referidos são a sensação de cansaço, de secura, de desconforto e até de dor.


Também no que diz respeito ao campo da Psiquiatria e da Saúde Mental, a profissão docente surge como área profissional de risco. Entidades como o “stress”, o “burnout”, os distúrbios da ansiedade e a depressão são frequentemente referidas. A ubiquidade de factores de “stress” na vida dos professores do ensino básico e secundário tem levado a uma maior prevalência de síndromes de “burnout” (que alguns denominam “esgotamento”) e de depressão clínica. Existe ainda também muito trabalho a desenvolver na avaliação e na gestão do risco, por exemplo, para os distúrbios ansiosos e a depressão, bem como na sua abordagem mais eficiente no que toca à profissão docente.


A patologia alérgica e “irritativa” das vias respiratórias é também referida com frequência, ainda que constitua uma área nem sempre completamente esclarecida nas suas ligações às situações concretas de trabalho e muitas vezes "confundida" com a exposição a agentes "irritantes" das vias aéreas.


De facto, as situações de risco profissional nos docentes e os efeitos com eles relacionados não se enquadram facilmente nas relações “tradicionais” trabalho/doença, paradigmaticamente representadas pela exposição a fatores de riscos físicos ou químicos. Talvez essa seja uma das razões para a subvalorização que têm em todos os níveis de intervenção designadamente em Saúde Ocupacional (ou Saúde e Segurança do trabalho se se preferir), no seu sentido mais restrito, e até mesmo a nível das políticas públicas em matéria das relações entre o trabalho e a doença.



Nota: Adaptado de um texto publicado, inicialmente, no blog Safemed.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Saúde Ocupacional e Medicina do Trabalho em unidades de saúde: uma realidade concreta para manter e desenvolver!



Antonio Sousa-Uva


Há cerca de um quarto de século que têm vindo a ser criados Serviços de Saúde Ocupacional (ou Serviços de Segurança, Higiene e Saúde dos trabalhadores nos Locais de Trabalho) em diversas unidades de saúde, ainda que o enquadramento legal o impusesse muito antes, e taxativamente, na primeira metade dos anos de 1990, independentemente da sua dimensão ou de pertencerem ao sector público ou privado. É, de resto, nesses serviços (com idoneidade reconhecida) que se têm desenvolvido as, até agora, poucas dezenas de internatos de formação de Medicina do Trabalho (sem contar com a formação teórica e os outros estágios do respectivo plano).

De facto, a “visibilidade” da existência de factores de risco de natureza profissional em hospitais e outros serviços de saúde, tornou inadiável, mesmo para os mais cépticos, a perspetiva urgente de organização dos meios indispensáveis à gestão desses mesmos riscos, isto é, à criação de serviços de saúde e segurança dos trabalhadores. A actual situação do risco profissional específico SARS-CoV-2 ilustra bem essa necessidade, já há muito identificada nas situações de trabalho de prestação de cuidados de saúde, de poder conter diversos factores de risco de que, talvez, as radiações ionizantes tenham sido dos exemplos mais dramáticos (Uva, 1996, 1999).

Só após a transposição para o Direito interno Português da Diretiva Comunitária sobre Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho (DL 441/91) se atribuiu alguma importância à organização de serviços em todos os sectores de actividade económica, designadamente fora do sector secundário de atividade até aí o foco de actuação principal no que concerne à organização de serviços. 

Tais aspetos, no entanto, já tinham, de resto, suscitado a atenção da comunidade científica e dos representantes dos trabalhadores desde meados dos anos de 1970 e 1980 e proporcionado, nesse âmbito, alguma reflexão. Ainda no início dos anos de 1990 (1991), um relatório elaborado pela Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (SPMT), concluía pela necessidade de concretizar programas que contemplassem, no mínimo, ações conjugadas de monitorização ambiental e de vigilância de saúde dos técnicos de saúde, tendo em vista uma prevenção eficaz dos riscos profissionais (Uva e Faria, 1992). Neste espaço de reflexão gostaria de destacar alguns aspectos relativos aos diversos fatores de risco de natureza profissional a que os técnicos de saúde se encontram expostos, na perspetiva das suas expectativas e necessidades. Isto é, se também para os técnicos de saúde, os riscos profissionais são perspectivados com a importância que lhes deve ser atribuída. 

Os fatores de risco de natureza profissional subdividem-se tradicionalmente, de acordo com a respectiva origem, em fatores de risco de natureza física, de natureza química, de natureza psicossocial, relacionados com a atividade (ou ergonómicos) e ainda fatores de risco de natureza (micro)biológica, sendo estes últimos os fatores profissionais que mais frequentemente se identificam como suscetíveis de constituir risco para os profissionais de saúde, ainda que habitualmente confinados à SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida), às Hepatites B e C e, mais recentemente, à Tuberculose multirresistente ainda que muitos outros existam. O SARS-CoV-2 é apenas mais um.

Alguns fatores de risco de natureza física são há muito associados ao trabalho realizado em meio hospitalar, relacionados, por exemplo e como se referiu, com a exposição a radiações ionizantes. Também, os agentes relacionados com a atividade constituem outro exemplo, designadamente o risco de lombalgias e outras raquialgias, que têm uma prevalência importante em trabalho hospitalar. 

Nas unidades de saúde utilizam-se ainda inúmeros compostos químicos que podem ter efeitos adversos (potenciais) para a saúde. A lista é muito extensa, destacando-se desde logo os desinfetantes, os anestésicos voláteis, os citostáticos, os inúmeros alergénios (por exemplo, alguns antibióticos e anti-inflamatórios) e outras substâncias químicas, até com potencial cancerígeno. 

Entre os fatores psicossociais, o risco de natureza profissional que habitualmente mais se refere é o do stress profissional (ou ocupacional) ou, ainda, relacionado com o trabalho e a violência a que podem estar sujeitos designadamente os médicos e os enfermeiros. Todavia, muitos outros existem, como por exemplo o trabalho por turnos (incluindo o trabalho noturno) ou os fatores relacionados com a atividade profissional, como é o exemplo da tensão associada ao tempo de resposta que se exige na sua ação. Estes fatores de risco têm, nos últimos anos, capitalizado a atenção de diversas organizações profissionais na área da saúde como é o exemplo paradigmático da violência perpetrada contra os profissionais de saúde já referida. 

A maioria dos indicadores disponíveis revela que a prestação de cuidados de saúde (e segurança) aos trabalhadores das instituições de saúde são, ainda e todavia, algo incipientes. Consequentemente, os trabalhadores da saúde constituem, objectivamente, um grupo profissional um pouco “negligenciado” em matéria de proteção da sua saúde e segurança, o que justifica a necessidade de continuar a investir em formas organizadas (e competentes) de “cuidar de quem cuida”. O Manual de Saúde Ocupacional em Hospitais (Sacadura-Leite e Sousa-Uva, 2018), em que participam quase três dezenas de autores, é mais uma das muitas iniciativas para objetivar tal propósito por parte de profissionais de saúde nessa área. 

Oxalá, também a actual situação pandémica, possa contribuir para nos irmos tornando mais eficazes e competentes nesse domínio já que é no mínimo estranho que a prestação de cuidados de saúde não contenha em si mesma os cuidados de proteger a saúde (e a segurança) do prestador (Uva, Prista e Leite, 2003; Uva e Prista, 2006; Sacadura-Leite e Sousa-Uva, 2018). Aliás, não há bom produto (cuidados de saúde) sem uma boa saúde do produtor (médicos e outros profissionais de saúde).


Bibliografia


Nota: Adaptado, com várias modificações, de uma versão inicial publicada no Blog Safemed.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Asma profissional: uma doença profissional muitas vezes disfarçada



Antonio Sousa-Uva


A asma profissional é, no essencial, uma obstrução reversível do fluxo de ar nas vias respiratórias e/ou uma hiper-reactividade brônquica causada por factores de risco de natureza profissional. Desde a última metade do século passado veio adquirindo um grande “protagonismo” entre as doenças profissionais “destronando” o anterior protagonismo das doenças respiratórias provocadas por poeiras, que os franceses designaram por pneumoconioses e cujo exemplo paradigmático será a silicose. No último quartel desse mesmo século o seu protagonismo nas doenças profissionais foi por sua vez ocupado pelas várias doenças (ou lesões) músculo-esqueléticas ligadas (ou relacionadas) com o trabalho que hoje totalizam, com as doenças provocadas por outros agentes físicos, mais de três quartos de todos os pensionistas por doenças profissionais reconhecidas pela entidade disso encarregue.


Estima-se que 5 a 10% de todas as asmas dos adultos possam ter origem profissional e, em certas atividades profissionais, essa proporção pode ainda ser maior como é o caso da indústria da panificação (a denominada asma dos padeiros). Independentemente de ser mais ou menos conhecida a sua frequência, a asma profissional é, por certo, insuficientemente conhecida, uma vez que o estabelecimento da sua relação com o trabalho nem sempre é suficientemente valorizado.


São conhecidos muitos factores de risco de asma profissional. A indústria da madeira, a indústria alimentar, a soldadura, a indústria têxtil, a indústria química e farmacêutica, a agricultura e a pecuária e a indústria dos plásticos e detergentes são, entre muitos outros, sectores económicos muito associados a um elevado número de casos de asma. Nos hospitais e outras unidades de saúde, diversas substâncias químicas como os desinfectantes, o látex ou os acrilatos podem causar asma brônquica (e outras patologias do aparelho respiratório) nos profissionais de saúde. Ainda no setor económico dos Serviços, a asma das cabeleireiras é outra realidade conhecida.


A presença de um quadro clínico de asma num indivíduo adulto deverá sempre chamar a atenção para a hipótese da sua causa ser profissional, principalmente se associado, por exemplo, a rinite ou conjuntivite que, muitas vezes, a precedem ou podem aparecer simultaneamente. A história clínica deverá incluir a história profissional pormenorizada, a identificação de um período de latência entre a exposição e o aparecimento dos sintomas, a identificação dos agentes presentes nos locais de trabalho e o conhecimento da actividade e das condições em que esta é exercida. É indispensável verificar as relações da sintomatologia com o tempo e o local de trabalho e questionar, sempre, sobre a existência de sintomatologia em outros trabalhadores do mesmo sector de actividade.


A ocorrência simultânea do início da sintomatologia após a exposição profissional e a demonstração da associação asma/trabalho devem-nos colocar de alerta principalmente se existir exposição a factores de risco profissional reconhecidamente susceptíveis de a causar. Também a existência de factores individuais predisponentes como a atopia, os hábitos tabágicos e a existência de hiper-reactividade brônquica nos devem colocar em alerta.


O tratamento da asma profissional é em tudo idêntico ao da asma de diferente etiologia com grande destaque para o afastamento do agente causal que, obviamente, é ainda mais decisiva, sendo mesmo obrigatório ser realizada o mais cedo possível já que os atraso dessa ação pode agravar muito a história natural da doença. De facto, prognósticos menos favoráveis para a asma profissional são, muitas vezes a continuação da exposição profissional após a ocorrência dos primeiros sintomas e a existência de alterações obstrutivas respiratórias com carácter permanente e mantido ao longo do tempo.



Bibliografia

  • Uva, A S. O médico do trabalho e as doenças alérgicas profissionais. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 2000 (Cadernos Avulso 2).
  • Uva, A S. – Asma profissional: da teoria à prática. Revista Portuguesa de Pneumologia. 2008;XIV(Supl 1):S61–S70.
  • Uva A S, Leite E S. Doenças respiratórias profissionais: mais vale prevenir que remediar. Saúde & Trabalho. 2005;5:89-112.

Nota: Publicado, numa versão inicial, no blog Safemed

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Sarna profissional vs. profissional com sarna




Antonio Sousa-Uva


A sarna é uma doença cutânea causada por um parasita, o ácaro Sarcoptes scabiei. O contágio faz-se por contacto com o tegumento cutâneo infestado, exigindo habitualmente contacto continuado e mantido, até mesmo com material contaminado desde que num tempo compatível com o ciclo vital do ácaro. Claro que tal via de contacto se pode fazer na prestação de cuidados (clínicos ou não) e que essa infestação (e infeção) nesses trabalhadores é mais frequente do que na população geral e por isso pode ser uma doença profissional: as chamadas “doenças profissionais não exclusivas” por oposição às doenças profissionais que, quase que em exclusividade, só ocorrem em população trabalhadora exposta (como é o exemplo da silicose, causada pela sílica livre). 

As lesões típicas da sarna atingem essencialmente as mãos e os punhos e também outras zonas cutâneas sendo poupadas algumas zonas como a cabeça ou as palmas das mãos e as plantas dos pés (com excepção das crianças em que tal pode ocorrer). Os túneis são feitos na pele pelos parasitas fêmeas onde põem os ovos. A contagiosidade, a dificuldade diagnóstica e a não adoção de medidas de prevenção designadas de várias maneiras que opto por chamar “precauções universais” constituem, entre outros, fatores facilitadores do contágio. Existem diversas formas de sarna, algumas muito agressivas como é o caso da chamada sarna norueguesa a que os profissionais de saúde podem estar, obviamente, mais expostos quer em internamento, quer noutros contextos de prestação de cuidados. 

Vem esta conversa a propósito de uma notícia de casos de sarna em profissionais de saúde no Hospital de S. João no Porto (in Expresso online. Agência Lusa, 28.04.2018 às 12h43): 


“… o Centro Hospitalar de São João (CHSJ), no Porto detetou, esta semana, três casos de pacientes com sarna, todos em tratamento em regime de internamento, admitindo o hospital que a doença tenha sido transmitida a alguns profissionais de saúde. A escabiose, ou sarna, é uma doenças parasitária humana frequente e contagiosa, mas curável … Neste momento, não há razão para medidas adicionais, não sendo este tipo de situação motivo para encerramento de espaços ou unidades, garante o Hospital São João, numa nota enviada à agência Lusa ...”. 

A grande preocupação, nota-se muito bem, é tranquilizar os cidadãos, o que se compreende. Ao longo dos últimos anos é raro o ano em que não se repetem notícias semelhantes com atingimento de um número variável de profissionais de saúde e em diferentes localizações geográficas o que, em si mesmo, é positivo pois é reconhecido esse risco como profissional e não o profissional que tem sarna. Gostava de recordar que tem mais de trinta anos a chamada de atenção para estes assuntos em Portugal e que a organização de serviços de Saúde Ocupacional ou de Medicina do Trabalho em hospitais e outras unidades de saúde ainda menos tempo terá. 

Será que investimos o suficiente nestes contextos para “gerir” estes riscos profissionais? 

E, já agora, também para os outros riscos profissionais?

Sinceramente, acho que não! É que, essencialmente, a prevenção não se faz com a sua evocação permanente ou, dito de outra forma, a antecipação não se antecipa só com palavras. Necessita, entre outros aspetos, de formas organizadas (e competentes) de intervenção e de recursos adequados que tardam em ser valorizados pelos vários “atores”, para além dessa evocação e da realização de “campanhas” ou dias europeus que se reconhece que são úteis mas insuficientes para a prevenção dos riscos profissionais.

É uma realidade o insuficiente investimento numa cultura (ou clima) de prevenção e a dotação de recursos indispensáveis à muito badalada "mais vale prevenir que remédios dar". Aceitemos que não somos bons nisso já que é a melhor forma de nos tornarmos melhores, mais cultos e mais competentes na prevenção … é o processo da “melhoria contínua” tão implantado em meio empresarial em vez do “varrer para debaixo do tapete”. No essencial, a questão é mais empresarial (ou organizacional) que se possa pensar e enquanto não se assumir isso a abordagem "imposta" (qual IRC ou IRS) não será, seguramente, suficiente!


Nota: Modificado de uma versão publicada, inicialmente, no blog Safemed.




sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Stress relacionado com o trabalho: será uma inevitabilidade?



A palavra Stress está ligada a “stringere”, cujo significado é “esticar” ou “deformar” e se associa portanto ao conceito de “tensão”. De facto, em termos correntes e frequentemente, as designações “tensão”, “aperto”, “pressão” e “carga” (ou “sobrecarga”) são utilizadas como sinónimos de stress. Para se obterem boas respostas, tal tensão é, por certo, útil mas de difícil controlo entre o que alguns denominam stress bom (eustress) e o stress mau (distress).

Em ambiente de trabalho é, quase sempre, o stress (relacionado com o trabalho, profissional ou ocupacional) que se associa ao seu ambiente psicossocial. Claro que existem inúmeros outros riscos profissionais de natureza psicossocial dos quais, nos nossos dias, o burnout é, talvez, senão o mais visível, o mais falado em determinadas profissões e/ou atividades profissionais e, quiçá, o mais temido.
stress configura, quase sempre, uma situação de desarmonia entre as necessidades do indivíduo e as exigências do trabalho, ainda que existam muitas outras teorias explicativas da sua etiologia, bem mais complexas e, por certo, mais próximas desse processo.

Em Saúde Ocupacional, também denominada Saúde e Segurança do Trabalho (SST), a abordagem dos fatores de risco profissionais, na perspetiva da sua prevenção, tem-se centrado essencialmente nos factores de risco tradicionais, como são o exemplo das substâncias químicas ou dos agentes físicos. Tal abordagem conduz (ou “arrasta”) a nossa atenção para o ambiente de trabalho na perspectiva "clássica", desvalorizando os aspectos psicossociais, por exemplo, relacionados com a organização do trabalho ou as interacções (verticais ou transversais) entre colegas de trabalho e chefias ou, ainda, o trabalho de equipa.
Tal tem determinado uma total desarmonia entre a importância dada aos factores de risco psicossociais e as acções concretas que as empresas entendem dedicar a tal matéria. E quando dedicam alguma atenção concentram essa atenção, no essencial, na imagem do trabalhador “todo-o-terreno” que há alguns anos resolvi adotar, como “representação”, para me referir ao investimento na resiliência dos trabalhadores. Dito de outro modo, pretende-se um trabalhador que "resista" a qualquer situação de trabalho, por pior que seja na perspectiva da saúde e segurança.

Kompier e Levi (1994), a esse respeito, propõem a metáfora do “pé e do sapato” (o pé = o trabalhador; o sapato = o posto de trabalho) para as respostas de “coping” do stress, centradas no indivíduo, no trabalho ou em ambos: (i) “procurar o sapato certo para o pé certo” (ii) “adaptar o sapato ao pé”; e (iii) “fortalecer o pé para se adaptar ao sapato”. É um modelo interessante, que nos chama a atenção para se investir também, se não essencialmente, também na resiliência das organizações a não permitir situações de trabalho insalubres e inseguras. Dito de outra forma, há que investir no “pé” e no “sapato” se pretendermos um melhor ambiente psicossocial no trabalho.

De facto, quase toda a nossa atenção, nos nossos dias, se tem centrado no “pé” (leia-se trabalhador) mesmo que, caricaturalmente, o sapato (posto de trabalho) seja número 46 para um pé 39 … É a anciã perspetiva do trabalho imutável e da “seleção” de trabalhadores para esse trabalho que urge mudar ("compreender o trabalho para o modificar"). Aquela é uma perspetiva muito actual, e mesmo assim clássica e pouco adequada, das organizações de admissão de recursos humanos (leia-se “pessoas”) e não das organizações que se dedicam à prevenção dos riscos profissionais, à promoção da saúde e à manutenção da capacidade trabalho que é o que é suposto que a Saúde Ocupacional (ou SST) faça (ou pelo menos persiga).

Quando se fala em Trabalho estamos a referirmo-nos a "Trabalho Humano" ou, dito de forma diversa, o trabalhador é parte integrante desse trabalho e, por isso, o trabalho deve ser concebido para não constituir risco para a saúde e segurança ou, caso não seja evitável, integrar na sua concepção os elementos que, senão for possível anular esse mesmo risco, o circunscreva a níveis o mais baixos possíveis ou que, em cada momento, se considerem aceitáveis. 
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Bibliografia

  • Kompier M, Levi L. Stress at Work: Causes, Effects, and Prevention. Dublin: European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 1994.
  • Sousa-Uva A. Medicina do Trabalho: o que é e para que serve? Segurança 2016;231:28-31.
  • Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.

Nota: Publicado, numa forma inicial, no blog Safemed e agora actualizado.